segunda-feira, 30 de abril de 2007

O PAÍS NORDESTINO - E a sua incomparável geografia de azuis.


“Que eloqüente sermão é por si mesma toda essa terra...”.
(Missionário anônimo)


Pela pena arguta de Nertan Macedo, um caririense do Crato – biógrafo, ensaísta, escritor e romancista da melhor cepa – foi reproduzido, como numa obra plástica, o país nordestino e a sua incomparável geografia de azuis – onde retrata, em igual tela policromática, detalhando cada parte e cada situação desse imenso continente, rico em contrastes, como a terra, o povo e suas maiores e melhores tradições. Longe, muito longe de ser o País de Cocagne, de Pieter Brueghel, e de insinuar nas terras reinos e distantes de Passárgada, imaginada, sonhada e desejada por Manuel Bandeira, era e é, certamente, o país de homens de diversos ofícios e pecados, como na conceituação exata de Cortez, quando expôs ao mundo antigo o modo de vida das gentes sudamericanas – sem pecado e sem juízo – “abaixo do Equador” – nos tempos da colonização espanhola – “ultra equinoti alem non peccati”.[1]

Descreve Nertan: “Nessa ardente geografia, de um país lento e triste, em latitudes de grandes, fabulosos azuis, gravados em magníficos céus, feitos para silêncios e contemplações perpétuas. País onde o resto do mundo, inclusive o maroceano, é apenas pressentido, vagamente sabido. Muito além das Terras Grandes p do Rio de Janeiro,d a Bahia, de Roma e de Jerusalém. Longínquo país, a morada dos nordestinos...

“O anoitecer é belo, no sertão”. Triste, doce o vento, senhor do ar e da natureza, no seu afagar sutil. A noite fascina, em qualquer parte do mundo. Mas, aqui, aqui é a minha infância, que adormeceu outra vez, o sono velado de mil histórias e lendas, de mil arcanjos fulgurantes, de mil heróis sinistros, de mil encourados luminosos, parceiros do Príncipe e das suas Trevas e Labaredas.

Miremos as amplidões. Acima das raras nuvens compactas, que se acinzentam em manchas turvas, ver-se-á, como flutua e flui, noite adentro, o tempo”.

“Na curva, extemporâneos, fora desse mundo, aparições do mundo velho, o despontar de vaqueiros, em alígero chouto, de pouca poeira. Trazem as faces abrasadas, nascidos que foram ao sol e ao vento, erguendo a mão poderosa, de cujo pulso pende a chibata de couro, oscilante, para tocar na aba do chapéu, também de couro, compassando a saudação dos antigos: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!... – Para sempre seja louvado!”. “E, prosseguindo, deixando no ar a marca da passagem: cheiro de couro suado...”.

Era um país despovoado e obscuro, o país dos nordestinos, a ponto de Euclides da Cunha, autor do épico “Os Sertões”, afirmar categórico: “O Sertão é o homizio” – justificando, num estereótipo, todo o continente do semi-árido, perdido no intermúndio, como refúgio e velhacouto daqueles que não queriam ser encontrados. Viu e sentiu Euclides, em Canudos, como viram e sentiram todos aqueles que o contemplaram boquiabertos, pela primeira vez, do altiplano aberto que se descortina na fronteira Oeste do cariri cearense com a Paraíba, num ângulo em que os golpes de vista confundem-se, e nos mostra a mais obscura fronteira dos nossos sertões... Visto da mesma forma como viu o Frei Caneca quando contemplou o sertão aberto do Seridó, na região das Parelhas (quando dirigia-se á Conceição do Azevedo, ‘Jardim do Seridó’ – em propaganda da Confederação do Equador – 1824), quando do alto da muralha da Borborema, ainda do lado paraibano, vislumbrou o chefe revolucionário toda a beleza da região Sul do estado rio-grandense.

O Seridó, como civilização integrante desse imenso país, é uma terra a parte. É uma terra de contrastes múltiplos, não somente pela geografia de suas paisagens abertas, monótonas e acinzentadas de sua caatinga, onde em algumas regiões já apresenta-se o estado de desertificação acentuado, mas sobretudo nas variações climáticas bruscas, a ponto de, no mês de julho chegarmos a 26º ou 30º á sombra, no “pingo do meio dia”; e a noite, após as vinte horas, tornar-se a temperatura amena a prazerosa dos 22º ou 23º, chegando ao ponto de, ás vezes, baixar ainda mais, numa típica climatologia das regiões desérticas da África. Tem o sertão do Nordeste, principalmente o seu semi-árido, duas estações: período de seca e período de chuvas, o que não se pode confundir nunca com verão e inverno, vez que a seca para nós não é uma estação climática, mas sim a variante trágica, com a qual convivemos desde o início da nossa colonização; e o período de chuvas, intermitentes, o que não se pode chamar de inverno, mas sim dádivas caídas dos céus para refresco das terras incendiadas pelo sol e para salvação das nossas sementes de criação.

“A seca é, porém mais um fenômeno social que mesmo uma conseqüência puramente meteorológica. As condições de vida estabilizadas em determinada região, a importância da população, a natureza rendimento do cultivo do solo são fatores que pesarão muito mais intensamente na avaliação do desequilíbrio econômico provocado pela seca que as contingências meteorológicas, embora se apresentem elas mais severas em outras regiões que, por mais desertas, são menos aproveitadas e menos civilizadas”. Diferente da “monção” indiana que, periodicamente, leva a chuva para as regiões mais áridas do continente indiano, as chuvas do semi-árido nordestino são inconstantes, irregulares e muitas vezes incertas e desacreditadas.

Tem também o país dos nordestinos terras de belezas “trágicas”, encravadas a partir do Sul da Bahia e Norte de Minas Gerais, e mesmo Norte do Espírito Santo – sim, porque essas regiões também fazem parte do país nordestino. Lá, na testa das Gerais, resiste o Raso da Catarina, que na descrição de Nertan, “é um deserto dentro do deserto”. Trágico, exsicado, impenetrável, cinzento, atmosfera de fornalha, a filial do inferno...

O excepcional Ranulfo Prata, biógrafo de Lampião, assim o vislumbrou: “O Raso da Catarina é uma extensa região de dezenas de léguas, erma e inóspita como nenhuma outra, que fica encravada no âmago do Nordeste baiano, entre Jeremoabo e Várzea da Ema. A denominação de Raso traduz bem a fisionomia topográfica do terreno, sem acidentes nem escabrosidades, a desdobrar-se plano em chapadões.

É um deserto, e um deserto recrestado de agressividade sem par, naquelas terras onde tudo é árido e adusto. Comparando-se-lhe á caatinga que a circunda, embraseada e maninha, é um vergel, porque ainda possui o juazeiro de folhas virentes e cacimbas onde borbulham filetes impercetíveis de água.

É um sarçal ardente. Verdadeira “sylva horrida!” – A Sylva Aesu Aphylla, de Martius.

É nesse país dos nordestinos que localiza-se, não apenas uma região, mas uma alongada faixa de terra chamada Agreste, entre a zona da mata e o sertão semi-árido, que vai desde o Rio Grande do Norte aos planaltos da Bahia. Nenhuma outra parte do nosso país tem a primazia de possuir a beleza selvagem e áspera das terras agrestinas.

Foi nesse país de esguias, secas e belas paisagens que, no ano de 1951, pelo projeto convertido na Lei nº 1.348, de 10 de fevereiro de foram definidos os limites do bolsão das secas: “A poligonal que limita a área dos estados sujeitos aos efeitos das secas, terá por vértices, na orla do Atlântico, as cidades de João Pessoa, Natal e Fortaleza e o ponto limite entre os estados do Ceará e Piauí, na foz do Rio São João da Praia; a embocadura do Longa, no Parnaíba, e, seguindo pela margem direita deste, a afluência do Urussu Preto, cujo curso acompanha até as nascentes; a cidade de Gilbués, no Piauí, a cidade de Barras, no estado da Bahia, e pela linha reta atual, as cidades de Pirapora, Bocaiúva, Salinas e Rio Pardo de Minas, no estado de Minas Gerais, as cidades de Vista Nova, Poções e Amargosa, no estado da Bahia, as cidades de Tobias Barreto e Canhoba, no estado de Sergipe, a cidade de Gravatá, no estado de Pernambuco, a cidade de João Pessoa, no estado da Paraíba”. (Sic).

Em 220 anos, o Ceará, por exemplo, sofreu 20 secas maiores e menores. O Nordeste, de um modo geral, experimentou em igual período os efeitos desastrosos de 26 inundações e 24 secas.

Na grande seca de 1777, o rebanho bovino da região do Seridó, notadamente da região dos Currais Novos, foi quase que totalmente dizimado. Do grande rebanho de Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos, que possuía cinco datas de sesmarias, e que eram de aproximadamente 6 mil cabeças, restaram apenas 8 reses: 4 bois mansos, 3 vacas e 1 bezerro macho. E foi com essa semente de gado eu D. Adriana e seus filhos, numa soma de esforços e de trabalho obstinado, restituiu aos seus currais, nos anos subseqüentes, todo o gado que lhe fora arrebatado pela variante, evitando assim que se perdessem os ferros. [2]

Na verdade, o que há, muitas vezes no semi-árido do país dos nordestinos, não é a falta d’água em si, ms certamente a falta de reservatórios pra segurar toda a água caída das chuvas. Mas também existe a má distribuição, pela irregularidade de chuvas, naturalmente, por isso, teve razão aquele sertanejo do Rio Grande do Norte que disse ao jornalista Carlos Lacerda: “Dêe-me cinco chuvas por ano, nos dias que eu escolher, e tudo estará bem!”.

A média pluviométrica de quase todo o semi-árido nordestino é de 400 a 500 mm/ano, e só para se ter uma idéia, os Estados Unidos, eu recuperaram vastas regiões do seu território pela irrigação, com uma queda pluviométrica nunca superior a 264 mm/ano; casos também comprovados na Itália, na Lombárdia, Piemonte, e nas várzeas do Pó; dos franceses, na África, dos ingleses, na Índia; do Egito e da China.

Na pavorosa seca de 1930-1932, a média de chuvas no Ceará, por exemplo, foi de 454 mm; na Paraíba, de 358 mm; e no Rio Grande do Norte, de 354 mm. Mais do que os 264 mm caídos em todas as outras regiões recuperadas pelo mundo afora. Portanto, fica patente que o problema do semi-árido nordestino não é água, mas sim reservatórios para reter as águas caídas das chuvas, e vergonha na cara dos nossos políticos.

Mas, é nesse país dos nordestinos, tão cheio de contrastes e de belezas que, a desertificação está se expandindo e atingindo níveis alarmantes. No Ceará, que tem uma área total de 148.016 Km² 17% do seu território já está comprometido com um acelerado processo de desertificação. Isso significa 25,1 mil Km² de terras improdutivas para a agricultura e a pecuária, comparáveis a um espaço superior ao estado de Sergipe (com 22.050 Km²) e um pouco menor do que a Bélgica (com 30.520 Km&sup2). O processo gradual , porém já acelerado de desertificação também atinge o Rio Grande do Norte, e no município de Currais Novos existem áreas onde a dizimação da flora e de toda a vegetação nativa é preocupante, e a esterilidade da terra é digna de ser levada em consideração pelos nossos governos: municipal, estadual e federal, o que não acontece, pois quase sempre os “grandes” estudos e as “grandes” soluções para o problema, perdem-se entre as gavetas abarrotadas de “grandes” projetos governamentais. Disse Semller que, “nos desertos é que devemos procurar a solução para o deserto”. Mas aqui fazem e agem de modo sempre contrário. Fala-se muito em reflorestamento, mas será que poderemos reflorestar uma região como a nossa, que nunca teve uma floresta recente? Pode-se falar de desenvolvimento sustentável, tardiamente, sabendo nós que esse desenvolvimento aqui nunca irá chegar?

[1] “Não existe pecado além do equinócio”. – Barléus.
[2] Expressão típica do Seridó: perda de todo o rebanho por seca ou morrinha – não sobrar mais gado para ser marcado.

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