segunda-feira, 30 de abril de 2007

EVOLUÇÃO POLÍTICA DE CURRAIS NOVOS




Desde o final do segundo Império até o ano de 1920, quando passou á condição de cidade, Currais Novos era administrada pelo sistema de Câmara de Intendentes ou Conselho da Intendência, sendo seus membros eleitos pelo velho sistema de “voto a bico de pena”, nos traquejados currais eleitorais, onde em colegiado elegiam o seu Presidente, que passava então a governar com todas as prerrogativas de um prefeito. Os demais membros (intendentes) eleitos funcionavam como um corpo de vereadores, com mandatos que variavam de 2 a 4 anos, ou até mais ou menos tempo, dada a informalidade do sistema eleitoral e até mesmo pela falta de uma legislação mais contundente e maior fiscalização por parte dos órgãos governamentais então vigentes, quer no Império, quer na República.

Sobre eleições a bico de pena, em Currais Novos, quem nos fala é o Dr. Antônio Othon Filho (in Meio Século da Roça à Cidade): (...) Não alcancei mais como escrivão (Laurindo) e sim Salustiano Macaco, nosso vizinho que, nas eleições de bico de pena chamadas, me convidava para escrever nomes de 10 e 15 eleitores, com a recomendação de que mudasse de letra; horas depois voltava ao mesmo serviço”. (Sic).

José Nilton de Azevedo, historiador jardinense, falecido há poucos anos, também referiu-se a tais eleições: “Os coronéis, como chefes políticos, na época das eleições, conduziam os livros dos votantes, para o qual pediam aos eleitores que votassem nos seus candidatos. Esse voto era conhecido como ‘voto a bico de pena’. Os eleitores não conheciam sequer os candidatos. Porém, em consideração ao coronel, assinavam o livro, dando o voto”.

Estes dois exemplos, no caso de cidades seridoenses, pois na capital do Estado, repetia-se a mesma coisa, coincidentemente, apenas com pequenas diferenças no modus operandi, como bem escreveu o professor Ivanaldo Lopes (in Oficiais da PM): (...) Á época das eleições a ‘bico de pena’, antiquadas e ilógicas eleições diretas: fora designado presidente de uma mesa eleitoral. O modo era a chamada do eleitor pelo nome, quando sufragaria ao candidato que lhe era im posto. Não se fazia a fila física que hoje se observa. Havia o amontoado, isto é, fila oral, dependente do interesse do presidente da seção. Mas até que havia mais silêncio e ordem. Pessoas velhas e mulheres gestantes não tinham prioridade. Eram dispensadas de votar e, se o queriam, pertenciam ao mesmo nível. Nada de cabelos brancos ou de barriga. É claro que nada sofriam por uma ausência legal. (...) Chamado o nome, comparecia á presença do presidente, recebia dele mesmo a cédula e a punha na urna. Serviam de urna até as famosas e conhecidas latas de quarosene ou um saco de estopa. Não importava a insegurança, pois a barganha já estivera pronta, dando uma certa vez, a derrota inesperada de Rui Barbosa. De nada valeram as reações do grande tribuno. O resultado era aquele demonstrado pelas urnas. Bem pior é modificar o mapa...(...)”.

“O Senador José Martiniano de Alencar, de tradição liberal e revolucionária, quando presidente da Província do Ceará, costumava dizer que “Constituição não se fazia para a canalha”, como outros ainda agora sustentam – “que a canalha não faz constituições”. [1] Para compor os Conselhos de Intendência ou mesmo para a eles se candidatarem, tinham que ser os candidatos considerados “homens bons” no sertão ou “fidalgos” nos grandes centros, pois as Câmaras e Almotacés eram redutos da burguesia reinante.O poder político em Currais Novos sempre foi exercido pelos patenteados da velha Guarda Nacional, de influência, ou por cidadãos representantes da considerada elite rural, os quais dominavam á cena econômica, política e social de todo o município, ora pelos ditames morais ora pelos ditames econômicos ou mesmo familiares. Todos eles, os Presidentes da Intendência, até o final do segundo império e mesmo na república velha, sem distinção, pertenciam a essa gesta privilegiada da nossa sociedade, em sua grande maioria, descendentes ou agregados do fundador da urbe, como se pode observar, membros do clã Bezerra Galvão, sendo vetado, por convenções individualistas e absurdas, a qualquer membro á margem dessa classe ascender a qualquer cargo executivo na estrutura política e social até então estabelecida por aquela oligarquia familiar. Não se sabe ainda por quais alcunhas eram conhecidos os curraisnovenses que, não pertencendo ao clã dominante, se insinuavam em nossa antiga política, mas em 1720, por exemplo, quando os grandes clãs e grandes genearquias políticas dominavam á cena colonial brasileira reinol, “um cidadão foi escolhido para exercer a humilde função de inspetor (fiscal) de pesos e medidas, apelidada por lei como ‘juiz almotacé’. Em seguida foi descoberto que o ‘eleito’ era um simples vendedor de sardinhas. Pois bem, o homem teve a sai eleição anulada, com aceitação do senado maranhense, por que não era ‘nobre...’”.

Aqui mesmo em Extremoz, em 1849, quando “o jornal natalense ‘O Sulista’, n° 6, de 5 de agosto de 1849, fez uma triste acusação contra os filiados do Partido Liberal que em Extremoz votam em homens que vivem de apanhar caranguejos”. Transparecia assim, a flor da pele, essa separação econômica-social, que dominou tanto a política do Brasil desde os tempos reinós até a Revolução de 30.

No final do Século XIX, mais precisamente em 1896, Currais Novos, politicamente, dividia-se em duas facções: uma conservadora, liderada pela família Gomes de Melo, tendo a frente o Major Luiz Gomes de Melo Lula; outra liberal, comandada pela família Bezerra, cujo chefe natural era o Coronel José Bezerra de Araújo Galvão. Mas na verdade dos fatos, a política conservadora era feita por liberais e a liberal por conservadores, nos mesmos moldes que se fazia no resto do país, da mesma forma como disse Zacarias ao Partido Conservador do Paraná, em ensaio fusionista, ao chefe do governo: Reputo-me liberal, ou liberal moderado, o que para mim é o mesmo que conservador moderado ou progressista; a denominação é nada, a idéia é tudo”. Até a crítica política de então, pelos jornais, conceituava: “mais parecido com um liberal no poder é um conservador no poder”. Ou ainda: “o que é um liberal e o que é um conservador, se ambos vêm dos mesmos clãs e pertencem ás mesmas oligarquias?”.
Quando se deu o rompimento político do Dr. Pedro Velho de Albuquerque Maranhão com o senador José Bernardo, o coronel José Bezerra, chefe de grande prestígio em Currais Novos e em todo o Seridó, ficou ao lado de José Bernardo, com seu irmão coronel Silvino Bezerra, do Acari, a quem considerava seu “líder” político. Por essa ocasião, Pedro Velho entregou ao Major Lula Gomes a direção de sua política no município recém criado. Em conseqüência desse ato, foi o coronel José Bezerra demitido das funções de Delegado de Polícia, demissão essa imposta pelos elementos da facção Pedro-velhista, no município. Os tempos rodaram. A política que os separara os uniriam dentro em breve. “Feito, porém, o acordo, entre os dois grandes chefes, Pedro Velho e José Bernardo, a direção de Currais Novos ficou bipartida entre José Bezerra e Lula Gomes, que sempre foram amigos particulares, facilitando essa amizade e harmonia, que daí por diante reinou constantemente entre os dois chefes”.(Sic).

Mas, os tempos de calmaria, por assim dizer, não atingiram a todos em nossa política. Pelo menos para alguns, as coisas rodaram ao contrário, indo parar alguns no ostracismo não tão gratuito, ou num esteio, como foi o caso do capitão João Jerônimo de Souza: “O Capitão Joça era liberal, e foi preso e amarrado em um esteio da casa do capitão Juventino da Silveira Borges, conservador, pelo delegado Manuel Mendes de Oliveira, também conservador, sob a alegação (dúbia) de desonestidade...”. (Sic).[2]

Em 1911, tentando uma unificação de forças políticas homogêneas em Currais Novos, o coronel José Bezerra, liberal, reuniu-se ao major Lula Gomes, conservador, combinando a queda do líder do Partido Conservador, Laurindo Escrivão (Laurindo Francelino de Souza e Silva), para o que convidaram ao capitão Luiz de Medeiros Galvão (Lulu da Areia) e o alfares Cândido de Oliveira Mendes, para abandonar Laurindo, que já não tinha forças para dirigir o partido. Como resultante do conchavo, além de Laurindo, caíram também o capitão Laurentino Bezerra de Medeiros Galvão, capitão José Gomes de Melo, coronel Manuel Salustino Gomes de Macedo, capitão Laurentino Bezerra de Araújo Galvão, Manoel de Medeiros e Silva (Neco da Areia), Manuel Lopes Galvão (Nelo Lopes), dentre outros. Contudo, no dia 14 de junho de 1906, portanto, cinco anos antes, o coronel José Bezerra fez publicar um manifesto comunicando o seu afastamento oficial da direção política do município, passando-a ao Major Lula Gomes. No mesmo manifesto, o coronel demite-se dos cargos de Delegado de Polícia e de Delegado Escolar. Isso tudo na teoria, pois na prática, como é sabido, o coronel José Bezerra nunca afastou-se, de fato, da política de Currais Novos.

Em 1913, o coronel José Bezerra ficou como Presidente da Intendência e Cândido de Oliveira Mendes como vice. Em 1915, Cândido passou a Presidente, consolidando-se os liberais.

O modelo político praticado naqueles tempos era o de favores mútuos, como ainda o é hoje em dia, mas com nuanças diferentes: “Na concepção do chefe sertanejo, um favor se paga com outro favor. Para ele, favor é dar um dia de serviço quando o pobre está passando fome; é não deixar que vá preso quando se embriaga e tenta subverter a ordem pública; é dar a roupa e o calçado para votar; é dar o remédio e o médico quando o pobre está doente; é afiançá-lo na loja do comerciante para comprar a roupa; é dar-lhe terra e fornecer dinheiro para plantar e limpar o roçado. Em troca desses favores exige naturalmente outros favores. Exige que leve e traga os recados. Exige que vá a feira comprar e trazer as mercadorias. Exige respeito e acatamento ás suas ordens. Exige que açoite ou mate o adversário quando lhe ofende. Exige que bote água e lenha em casa. Exige, finalmente, o voto. O voto que é o instrumento poderoso com que o chefe mantém o seu prestígio, o seu domínio, a sua posição de líder. Sem isso, estaria terminado o seu ciclo, a sua gesta, o seu feudo”. (Sic). [3]

Hoje em dia, muito pouco ou quase nada mudou desses tempos, pois mesmo se vivendo em um estado democrático, as velhas práticas políticas parecem não nos querer deixar, e apegam-se cada vez mais ao nosso dia-a-dia, fazendo com que, nós, que representamos os cidadãos de um mundo moderno, pela corrupção e pelo fisiologismo, somos levados sempre a abjurar os nossos pensamentos e convicções e abraçar, involuntariamente, o modus faciendi dos grandes caciques, que também são donos dos grandes “currais” do século XXIU, representados pelos poderosos meios de comunicação de massa, dos quais são donatários.

À exceção do Dr. Mariano Coelho, Raul Macedo, João Neto Guimarães, Antônio Bezerra Linhares, Mariano Guimarães e Mozar Dias de Almeida, todos os administradores curraisnovenses, de intendentes e prefeitos, pertenceram ou pertencem, direta ou indiretamente ao clã Bezerra Galvão. Por essa e por outras, é que, no início do século XX, Ulisses Telêmaco de Araújo Galvão intentou mudar o nome de Currais Novos para Galvanópolis, na forma dessa oligarquia política havida em nosso município.

De 1892 ao ano de 2006, foram os seguintes os nossos administradores municipais:

INTENDENTES

1º - Capitão Laurentino Bezerra de Medeiros Galvão
(23.01.1892-03.04.1892)
2º - Coronel José Bezerra de Araújo Galvão
(04.04.1892-02.10.1892)
3º - Alferes Cândido de Oliveira Mendes
(03.10.1892-31.12.1895/01.04.1896-03.04.1898)
4º - Coronel João Alfredo Pires de Albuquerque Galvão
(04.04.1898-30.07.1904)
5º - Major Moisés de Oliveira Galvão
(01.08.1904-31.12.1904)
6º - Coronel Antônio Rafael de Vasconcelos Galvão
(01.01.1905-30.09.1906)
7º - Major Benvenuto Pereira de Araújo
(01.10.1906-31.12.1910)
8º - Major Ladislau de Vasconcelos Galvão
(11.01.1911-30.12.1914)
9º - Major Vivaldo Pereira de Araújo
(01.01.1917-31.12.1919)*

PREFEITOS

10º - Quintino Galvão (1º Prefeito)
(01.01.1923-08.10.1925)
11º - Antônio Rafael de Vasconcelos Galvão
(01.01.1926-08.10.1930)
12º - Dr. Mariano Coelho (Intervenção)
(09.10.1930-29.10.1930)
13º - Dr. Raul Macedo (Intervenção)
(30.11.1930-28.09.1934)
14º - João Neto Guimarães (Interbenção)
(28.09.1934-30.10.1935)
15º - Dr. Tristão Barros (intervenção)**
(01.01.1935-25.04.1936)
16º- Tomás Silveira de Araújo
(01.07.1936-14.07.1937)
17º - Dr. José Bezerra de Araújo
(15.07.1937-10.10.1943)
18º - Antônio de Vasconcelos Galvão
(15.07.1943-27.04.1945)
19º - Dr. Antônio Othon Filho
(28.04.1945-15.11.1945)
20º - Antônio Bezerra Linhares
(16.11.1945-22.02.1946)
21º - Alcindo Gomes de Melo
(23.02.1946-23.06.1947)
22º - Dr. Neófito Pinheiro Galvão
(24.06.1947-31.01.1948)
23º - Dr. Sílvio Bezerra de Melo
(1953-1958)
24º - Francisco Leonis Gomes de Assis***
(31.03.1953-31.01.1959)
25º - Dr. Neófito Pinheiro Galvão
(1958-1963)
26º - Mariano Guimarães
(1963-1969)
27º - Dr. Gilberto de Barros Lins
(1969-1973)
28º - José Vilani de Melo Lula****
(31.01.1973-08.05.1973)
29º - Bitamar Bezerra Barreto
(10.05.1973-31.12.1977)
30º - Dr. Geraldo Gomes de Oliveira
(1977-1981)
31º - José Dantas de Araújo
(1983-1989)
32º - Dr. Mozar Dias de Almeida
(1989-1992)
33º - Dr. Gilberto de Barros Lins
(1993-1996)
34º - Dr. Geraldo Gomes de Oliveira
(1996-2000/2001-2004)
35º - José Marcionilo de Barros Lins Neto
(2005-)

Convenção:
* - Durante o período do Major Vivaldo Pereira de Araújo, foi criada a comarca de Currais Novos, no dia 27 de novembro de 1919, tendo como primeiro Juiz de Direito o Dr. Tomás Salustino Gomes de Melo, curraisnovense, futuro proprietário da Mineração Brejuí.

** - No dia 24.05.1936, o prefeito Dr. Tristão Barros foi assassinado em Natal, onde fora delatar um suposto subversivo, tendo por este sido morto a bala em plena Av. Rio Branco, em Natal.

*** - De 4 de junho de 1956 a 1° de abril de 1957, por licença médica do Prefeito Sr. Francisco Leonis Gomes de Assis, assume na interinidade o Presidente da Câmara Municipal, Dr. Gilberto de Barros Lins, já que o vice-prefeito, Bitamar Bezerra Barreto também encontrava-se de licença.

**** - No dia 08.05.1973, o Prefeito José Vilani de Melo Lula renuncia ao cargo, sendo imediatamente substituído e cumprindo todo o restante do mandato, o seu vice, Bitamar Bezerra Barreto.

[1] N. Macedo.
[2] Antônio Othon Filho.
[3] Manoel Rodrigues de Melo.

1935 - A GRANDE FORJA DE HERÓIS - "De Doidinho a Batalha de Itararé".





Nos anos 30, nossa época de maior efervescência política e social, já não bastava a simbologia que encerrava Luiz Carlos Prestes, Getúlio Vargas, Plínio Salgado, Café Filho, Juarez Távora, José Américo de Almeida e de todos aqueles que levavam o povo a pensamentos e ações. Já não bastavam os ânimos sempre acirrados, a propaganda e a contra-propaganda ideológicas, os dogmas e as doutrinas... Já não bastava simplesmente semear as idéias utópicas da luta sem a realidade da luta. Já não bastavam as idéias, mas sim a prática.


Para se vivenciar a prática ideológica, fez-se necessária á constituição de “heróis”, para que assim pudessem ser erguidos os totens e os monumentos eméritos e beneméritos para a posteridade. Não a quem realmente de direito, mas sim para aqueles a quem as circunstâncias e as oportunidades concederam toda a honra, mas nenhuma glória, como é comum nesses partos ideológicos.


Um certo “soldado” chamado Luiz Gonzaga.


Durante sete décadas acreditou-se – porque assim foi oficialmente instituído – o fato de que um certo “soldado” chamado Luiz Gonzaga, pertencente à corporação da Polícia Militar do Rio Grande do Norte, teria sido o único e grande herói da Inssurreição Comunista de 1935, que ocorreu em Natal, quando rebeldes do 21 º Batalhão de Caçadores, liderados pelo sargento Quintino Clementino de Barros e pelo cabo Giocondo Alves Dias, aliançados com células do Partido Comunista do Brasil (na época PCB) e com organizações de esquerda da capital, dominaram a sede do batalhão e metralharam o quartel da PM, saindo vencedores, materializando assim o primeiro governo marxista-leninista das Américas, que durou exatamente 82 horas, do dia 23 ao dia 27/11/1935, para o qual foi constituída um Comitê Popular Revolucionário (CPR), composto pelos seguintes membros:

Quintino Clementino de Barros, 36 anos, sargento-músico do Exército – Secretário de Defesa;
Lauro Cortês Lago, 36 anos, funcionário público estadual – Secretário do Interior e Justiça;
José Macedo, 33 anos, Diretor dos Correios – Secretário de Finanças;
João Galvão, 33 anos, Secretário do Atheneu – Secretário de Viação;
José Praxedes, 36 anos, sapateiro – Secretário de Aprovisionamento.

Geralmente, quando se fala na Intentona Comunista de 35, relembra-se logo as quarteladas do Recife e do Rio de Janeiro, e incluí-se aí, erroneamente, Natal como parte integrante dessas quarteladas. É bem verdade que os movimentos comunistas deflagrados no Recife e no Rio de Janeiro, foram realmente intentonas, pois lá, nessas capitais, o movimento não tomou corpo e forma, como ocorreu em Natal. Na capital potiguar houve realmente uma inssurreição, onde progrediu para o enfrentamento bélico, culminando com a vitória dos inssurretos e a instalação de um governo provisório, mesmo que esse tenha durado tão somente 82 horas. Mas, é uma pena que alguns autores não queiram aceitar essa verdade histórica e ainda prossigam subvertendo a ordem natural do desenrolar dos nossos fatos históricos.


Assim conta a história permitida ...


Após ás 14h00 do dia 24 de novembro, quando a resistência do Quartel da Polícia, representada por dois oficiais e quarenta e seis soldados, sem munição, é obrigada a abandonar o front pelos fundos do prédio, numa passagem que dava para o Rio Potengí, retirada esta comandada pelos majores Luís Júlio e Pinto Soares, um inssurreto defronta-se com um “soldado” agachado, ás margens do Rio, portando um fuzil. Quando o tal “soldado” avistou os inssurretos, levantou-se rapidamente, aidna segurando a arma, quando foi alvejado por um único e certeiro tiro, tombando sem vida. Sobre isso escreveu Home Costa:...No combate do quartel da polícia militar foram feridos os sargentos Celso Anselmo Pinheiro e Celso Dantas Neto, o cabo Severino mendes e os soldados Antônio Jósimo e Antônio Gervásio de Medeiros – todos com ferimentos leves. Houve um morto: Luiz Gonzaga”. O autor do comentário declina as graduações dos militares feridos no combate, não referindo-se a Luiz Gonzaga como soldado ou integrante da defesa do quartel.
Sobre a conturbada figura de Luiz Gonzaga, muita polêmica foi travada. Agora, á luz dos acontecimentos históricos, sem paixões e sem ideologias, procuramos pesquisar a vida do tal “soldado” na bibliografia disponível, chegando á conclusão de que, realmente, Luiz Gonzaga nunca pertenceu aos quadros sda Polícia Militar do Rio Grande do Norte, pelo menos até novembro de 1935. Era um débil mental, natural de Santana do Matos, que residia nas imediações do quartel, e que costumeiramente vivia a fazer mandados da soldadesca, recebendo deles gorros, gandolas, calças e botas usadas, com o que passou a se trajar, por força das necessidades. Era comensal do quartel da polícia. Sobre isso escreveu o desembargador João Maria Furtado: (...) sempre afirmaram que, realmente morreu nas proximidades do quartel da polícia um pobre demente que vivia perambulando pelas ruas de Natal, ms nunca fora soldado da polícia militar (...)

Sizenando Figueira, então militante do Partido Comunista, que participou ativamente do movimento de novembro de 1935, disse, referindo-se a Luiz Gonzaga: “(...) ele não era nem herói nem militar na época. Era apenas um débil mental (...). Afirma o Sr. Sizenando Figueira que foi quem matou o tal “soldado”, “em legítima defesa”, adiantou.
Passado o período do movimento, resolveu então o comando da Polícia Militar alistar, com data retroativa, o tal “Luiz Gonzaga”, única vítima fatal do movimento, como bem disse o desembargador João Maria Furtado: “Entretanto, o major Luiz Júlio resolveu alistar depois de morto Luiz Gonzaga como soldado da polícia que, assim, teve uma morte de herói(...) Segundo um artigo do jornalista Luiz Gonzaga Cortez, intitulado “O Comunismo e as Lutas Políticas no Rio Grande do Norte na Década de 30”, publicado no Jornal “O Poti”, edição de 29/09/1985, diz: (...) Houve uma adulteração no relatório da inssurreição, no qual Luiz Gonzaga teria sido inscrito como soldado depois dos acontecimentos (...) O escritor Manuel Rodrigues de Melo, integralista á época dos acontecimentos, comentou em entrevista: Muitos anos depois é que começaram a falar nesse soldado...” No livro “Meu Depoimento”, publicado em 1937, o Dr. João Medeiros Filho exibe anexo um relatório do delegado auxiliar Enock Garcia, que referindo-se ás vítimas do movimento, não aparece o nome de Luiz Gonzaga. O professor Homero Costa prossegue: “No dia 30 de novembro de 1935, portanto, logo após a derrota da inssurreição, o governador Rafael Fernandes visita os quartéis do 21º BC e da Polícia Militar. Acompanhado pela imprensa, e não faz qualquer referência á morte de soldado da polícia militar. No dia 5 de dezembro de 1935, o coronel Otaviano Pinto Soares, comandante do 21º BC, em longa entevista que concedeu ao jornal “Correio da Manhã”, do Rio de Janeiro, detalha sua participação e não faz também qualquer referência á morte de soldado da polícia militar. No entanto, em documento datado de 7 de janeiro de 1936, o governador do estado envia ao comandante da 7ª Região Militar o relatório do comandante da Polícia Militar (anexos 2, 3 e 4) datado de 23 de dezembro de 1935, em que diz: “... Após a retirada do quartel foi atingido e morto por certeiros tiros do inimigo o soldado Luiz Gonzaga, que na metralhadora pesada se salientara como um bravo(...). O fato mais curioso é que o jornal oficial do governo do estado “A República” publica diversas matérias nos dias subseqüentes á insurreição e não faz qualquer referência á morte de soldado da polícia militar, nem que existisse tal soldado manobrando essa tal “metralhadora pesada”.
Em 1980, o Dr. João Medeiros Filho, em outro livro - “82 Horas de Subversão” - ao transcrever o mesmo relatório, acrescenta, como primeiro da lista, o “soldado” Luiz Gonzaga, do batalhão Policial. Finalmente, no dia 12 de outubro de 1985, o jornal publica uma carta do Dr. João Medeiros Filho, chefe de polícia á época, autor do livro anteriormente citado, afirmando o mesmo que, “reconhece ter adulterado o relatório, mas que o fez de boa fé”. Esta foi a prova maior de que a farsa foi realmente feita, resistindo até os nossos dias, onde o “soldado” Luiz Gonzaga nasceu por “obra e graça” do major Luiz Júlio, então comandante da Polícia Militar do RN, e que foi, posteriormente, transformado em mártir e herói da “Intentona Comunista de 1935”, Infelizmente, aquela era a hora de se abricar “heróis”, e o herói foi feito. Hoje, Luiz Gonzaga, o “soldado” mártir, é reverenciado como patrono da PM, tendo inclusive uma medalha de mérito da corporação que leva o seu nome e um mausoléu no cemitério do alecrim. “O feitichismo político exigia manipansos de farda. Escolheram-no para novo ídolo”.



A Batalha de Itararé



Em 1930, Getúlio Vargas e seus tenentes necessitavam urgentemente de um motivo incisivo para deflagrar a Revolução. O assassinato á bala do seu candidato a vice-presidente pela Aliança Liberal, João Pessoa, na Confeitaria Glória, no Recife, pelas mãos do advogado João Dantas, serviu de estopim e motivo para a deflagração, mesmo se sabendo hoje que o assassinato de João Pessoa tenha se dado por motivos meramente passionais e nunca políticos, que envolveu Anaíde Beiriz, namorada de João Dantas e a publicação de cartas amorosas pela imprensa.

Getúlio Vargas precisava urgentemente de um objeto de culto para impressionar s sugestionar o povo. O corpo de João Pessoa foi esse objeto sugestivo, tanto que, andaram com seu esquife, “país acima, país abaixo”, servindo de bandeira ao movimento dos tenentes.

Mais tarde, em Natal...


Assim como Luiz Gonzaga de Souza ou “doidinho”, como era mais conhecido em Natal, foi feito herói e mártir da Inssurreição Comunista de 1935, o ex-Governador Dinarte de Medeiros Mariz também o foi. Não foi Dinarte um herói fabricado por uma corporação ou sistema, mas foi um herói forjado nele próprio e por ele próprio, diante do aproveitamento das circunstâncias, e que também foi instituído no consciente coletivo do povo do Rio Grande do Norte, principalmente no povo do Seridó, de onde era natural e exercia as suas atividades comerciais e políticas.

É sabido por toda a população do estado, que o político e empresário do ramo de algodão Dinarte Mariz, natural de Serra Negra do Norte, mas com domicílio em Caicó, município no qual mantinha o seu grande reduto eleitoral, que naquele fim de tarde de 26 de novrmbro de 1935, havia ele pegado em armas e tiroteado contra comunistas em retirada da capital, na Serra do Doutor. Esse episódio da história política do Rio Grande do Norte foi passado para as gerações futuras sob diversos prismas. Da parte do ex-senador e do seu sistema político, a verdade consta que Dinarte realmente foi o grande contra-revolucionário da Inssurreição, entretanto, para os seus opositores ou mesmo para alguns pesquisadores e até mesmo para integralistas e comunistas que participaram ativamente do movimento e da ofensiva na Serra do Doutor, tudo não passou de um jogo de cena inteligente e eficiente. Porém, os fatos não foram relatados pela mídia da época como realmente aconteceram. Leiamos o que diz o escritor Homero Costa, sobre a inicial da questão:

“... no dia 26 de novembro de 1935, praticamente 41 municípios do estado estavam ocupados pelos rebeldes. À tarde, uma parte da tropa que estava na cidade de Santa Cruz se desloca pra a vizinha cidade de Currais Novos. No caminho, numa serra conhecida como “Serra do Doutor”, são surpreendidos por uma grande fuzilaria. Alguns fazendeiros, tendo á frente o 'coronel' Dinarte Mariz, que residia na cidade de Caicó, já informados sobre as ocorrências em Natal e o deslocamento de tropas para o interior do estado, se articulam para resistir. Vão a Campina Grande, na Paraíba, e conseguem, além de armas, aregimentar um considerável contingente (...) No caminho, sabem da ocupação de Santa Cruz e ficam entrincheirados na Serra do Doutor. Com a passagem de dois caminhões que saíam de Santa Cruz em direção a Currais Novos, abrem fogo, pegando-os de surpresa, e impõem a primeira derrota pelas armas aos inssurretos”.


Sobre os fatos ocorridos na Serra do Doutor, naquele fim de tarde do dia 26 de novembro de 1935, há muitas versões, relatadas por jornalistas, militares, sitiantes da região, integralistas, comunistas, etc., cada um, no caso dos sistemas políticos, “puxando a brasa para as suas sardinhas”, a fim de colherem dividendos para si e para os seus sistemas. Mas á luz dos acontecimentos históricos e da verdade dos fatos, podemos afirmar que, Dinarte Mariz, muito embora tenha participado ativamente da resistência aos inssurretos e ao próprio movimento de novembro de 1935, não encontrava-se presente, especificamente, á tardinha da quarta feira, dia 26 de novembro de 1935, na Serra do Doutor, quando se deu o confronto entre comunistas e os sertanejos do Seridó. Sobre isso, atesta o jornalista Luiz Gonzaga Cortez, escrevendo sobre entrevista que lhe foi concedida pelo senhor Manoel Lúcio de Macedo Filho, um dos chefes integralistas do Acari, entre 1933 e 1937:

“A batalha da Serra do Doutor foi travada entre comunistas que viajavam em dois caminhões e os integralistas aliciados pelo padre Walfredo Gurgel, que também era integralista e vigário de Acari. Este, com medo, não foi até a serra, viajando para Santa Luzia, no vizinho estado da Paraíba. Quanto a Dinarte Mariz, não participou de qualquer combate, só aparecendo na serra por volta das 19h00, quando tudo havia acabado”.

A Sra. Otávia Bezerra Dantas, esposa do Sr. Manoel Lúcio, dá também a sua versão á luz dos fatos, como contemporânea e partícipe do movimento:

“Depois da debandada geral, sem nenhum integralista ferido, Dinarte apareceu. Padre Walfredo e o seu motorista José Francisco Lúcio, apareceram no outro dia, de manhã, num chevrolet. Dias depois, andaram dizendo que Dinarte foi o 'general' da Serra do Doutor. Eu respondia na hora: “É mentira. Foram os doze “bobos” de carnaúba que fizeram as bombas e estragou a fuga dos comunistas”.

As versões do Sr. Manoel Lúcio e da Sra. Otávia Bezerra Dantas são depois confirmadas pelo próprio Enock Garcia (delegado auxiliar de Natal, na época) que, em depoimento prestado em 1987, confirma que tanto ele como Dinarte Mariz só chegaram ao local, com 400 homens, na madrugada de quarta feira, 26/11 – apresentando outra versão de horário, mas que nada infere na afirmação do casal integralista de Carnaúba dos Dantas.

Esses dois fatos aqui apresentados, falam por toda a convicção ideológica de uma época, em que a bandeira do anticomunismo serviu de estandarte para emoldurar campanhas políticas e fazer sobressair homens do quase anonimato para as lides do poder e da glória. Naquela época – como ainda hoje reclama-se – necessitava-se de “heróis” e de “mártires”. O poder estadual (e mesmo federal) carecia de que o capitalismo, sustentáculo e esteio da “livre iniciativa” e da manutenção dos grandes latifúndios – eleitorais e agrários – fosse mantido, e que o comunismo ateu, sílbolo do materialismo histórico e dialético, jamais procurasse sair do campo das idéias filosóficas para a prática, como coforeu naquels 82 horas em que Natal, principalmente, sentiu o gosto de haver engendrado, pela caminho da luta armada, o primeiro governo marxista-leninita das Américas, e legado para a posteridade os muitos exemplos e as muitas lições retiradas daquele fatídico episódio. Mas, é o próprio Marx que resume: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que imposta é modificá-lo”.



A RELIGIOSIDADE NO SERTÃO ANTIGO


“...Uma vez que o deuses não mais existiam, e o Cristo não existia ainda, houve, de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem”.
(Gustave Flaubert)


“A Tentativa quase malograda de colonização; a desordem e perigo de decadência das Capitanias; a desmoralização dos colonos; a do próprio clero, que, longe de dar o exemplo do bem, levava vida desregrada...”.[1]


O misticismo originário e a religiosidade primeva dos curraisnovenses antigos, bem como a de todos os seridoenses e habitantes do grande semi-árido nordestino era, de início, dotada de uma aura própria, peculiar, Surgidas dos velhos resquícios dos padres da companhia, das missões iniciais, forjada no catolicismo velho, arraigada a valores seiscentistas e a conceitos empíricos; construída através de lendas, superstições, ladainhas, rosários, encomendações, ofícios de trevas, horas marianas... Das missões abreviadas, que na conceituação de Nertan, “era um amontoado terrível de meditações e instruções extraídas dos evangelhos, principalmente da paixão de Cristo, seguida de resumos da vida dos santos: Francisco Xavier, Pelágia, Agostinho, Teresa de Jesus,, André Corsino, Felipe Nery, Rosa de Viterbo, Pedro d’Alcântara, Maria do Egito, Vicente, Bárbara, Inácio de Loyola, Maria Madalena de Pazz, Afonso, Catarina de Siena, Francisco de Assis, Bruno, Catarina Mártir, Luzia Virgem, Santo Antônio. Os versos de São Gregório ou novenas das almas. O miserer, orações para a missa, confissão,comunhão, pela exaltação da santa igreja, pela extirpação das heresias, pela paz entre os principais cristãos, pela propagação da fé, pelo sumo pontífice, para obter as ordens religiosas; a exaltação do Santíssimo Sacramento; a coroa de dores; em louvor de São Teotônio para obter triunfo no princípio e no fim das instruções...

Nos grandes centros, as músicas e cânticos; as melodias que derivam o pensamento para as coisas da terra e dos sentidos: o Kyrie Eleison, o Alleluia, o Agnus Dei, o Glória Pater, o Réquiem...

O costume religioso que foi herdado pelas gentes do sertão, era o mesmo dos colonizadores ibéricos aqui aportados nos séculos XVII e XVIII, os quais trouxeram os fardos do fanatismo, legados da Idade Média. Segundo Lapouge (Selections, 93), “a religião católica era porém moldada ás inteligências rudíssimas e sem trato, quase analfabetas, desses nossos antepassados, cuja ignorância e boa fé eram exploradas pelos ministros da religião, principalmente jesuítas, que no início do quinhentismo galgavam o primeiro degrau do pedestal que sob a égide de Loyola iam elevar por dois séculos e meio”.

Tempos em que, em Portugal, um dos centros adiantados da Europa quinhentista, para conseguir distinções de ordem religiosa, como a criação do Patriarcal de Lisboa, o título de ‘Fidelíssimo’ e para manifestações de seu apreço á Cúria Romana, fez D. João V, a esta, contribuições cujos valores têm sido objeto de contravérsias, tornando-se até lendárias. Um investigador português (Sebastião Ferreira Soares – “Elementos de Estatística – 1865”) lhes atribuiu as seguintes cifras:

Dinheiro em espécie 114.509.132 cruzados
Ouro de lei 6.417 arrobas e 13 libras
Prata de lei 324 arrobas
Cobre 15.697 arrobas
Diamantes 2.308 quilates
Soma total: mais de 27.000.000 libras.

Dos tempos áureos seiscentistas nas possessões Norte/Nordeste, onde os padres da companhia se regalavam nos Te Deum em ações de graças a sua educação equivocada e repressora, imprimindo nas mentes dos curumins inocentes toda uma carga pesada carga religiosa, incapaz de ser carregada por gente de cultura tão atávica.

Dos tempos em que as práticas religiosas mais se assemelhavam a um politeísmo pagão, com suas múltiplas divindades, representadas por centenas de santos, anjos, etc.

Nos testamentos dos nossos genearcas, toda a corte celestial era invocada com uma igenuidade admirável, no sentido de lhes serem perdoados os pecados e concedida a almejada “salvação” eterna. Ainda era assim em 1813, quase dois séculos depois da colonização, como se lê no preâmbulo do testamento do Capitão-mor Galvão:

“...Primeiramente encomendo a minha alma a Santíssima trindade, que a criou e rogo ao eterno padre que a queira receber pelos merecimentos da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo a Virgem Maria Nossa Senhora e todos os Santos da corte do Céu...”.

Dos tempos em que, em muitos centros adiantados do mundo, os altares das igrejas eram ornados com relíquias de mártires católicos, sobre a Pedra de Ara[2]; e inúmeros outros simbolismos[3] importantes da época. Não temos notícias de que na região de Currais Novos, especificamente,, houvessem os que se norteassem pela leitura e consultas do Lunário Perpétuo, do valenciano Jerônimo Cortez, mas a crença sertaneja nesse livro era bastante antiga e muito difundida, pois havia muitos dos seus exemplares espalhados pelo Nordeste primeiro, impressos antes do “descobrimento” do Brasil. O Conde d’Eu possuía um desses raros volumes, segundo a crônica, descoberto na Serra do Baturité, no Ceará. Em suas páginas continha toda a sabedoria antiga, do tempo em que o Sargento-mor Romão José Batista, no Cariri cearense, abria com palavras cabalísticas a porta mais bem trancada, qualquer que fosse a fechadura.

Era na verdade o “Lunário”, não um livro de profecias, apesar de nele conter previsões de acontecimentos futuros, tão em voga na velha Europa quinhentista, mas era um simples almanaque, onde seu autor, um homem profundamente sábio e versado em vários campos das ciências existentes em sua época, discorria com propriedade sobre maneiras e manejos de plantações, preparação de solos, colheitas e safras, controle de pragas, bem como análise de situações climáticas, criação de rebanhos, e formulava uma espécie de horóscopo primitivo, o que talvez tenha sido mistificado e mal interpretado pelas raras populações que tiveram acesso a sua leitura, que o confundiram como sendo profecias e centúrias religiosas, tomando o seu autor por profeta, o qual nunca o fora.

Tempos da Bíblia de Vatablo, com o texto hebreu, a Vulgata e a versão de Leão de Judá que, talvez por aqui nunca tenha chegado.

Também não há informações certas de que as seitas sebastianistas[4], tão comuns nos sertões do Ceará, Pernambuco e Bahia, tenham encontrado eco na região seridoense, notadamente em Currais Novos. Sobre isso, escreveu Mário Melo, na crônica “O Desejado – Relances da História”:”Em torno de Dom Sebastião fundou-se uma lenda de funestas conseqüências até nos sertões de Pernambuco. O jovem Rei não teria morrido na batalha de Alcácer-Quibir. Estaria encantado numa ilha e, quando menos se esperasse, reapareceria para restaurar o trono de Portugal, então absorvido pela Espanha, através de Felipe II. Duzentos anos depois, forma-se no sertão pernambucano uma seita para, com o sangue de crianças imoladas numa pedra, operar-se ali o ‘desencantamento’ do Rei desassizado e fanático que arrastara seu povo a luta inglória, ocasionando o cativeiro de sua pátria e a desgraça de sua gente”.

A volta ao trono de D. Pedro I foi objeto de diversos movimentos “sebastianistas” ocorridos durante a regência. A seita sebastianista de Pernambuco compôs um hino, do qual transcrevemos abaixo uma estrofe:

“Visita nos vem fazer
Nosso Rei Dom Sebastião
Coitado daquele pobre
Que estiver na lei do cão”. [5]

Em folhetos recolhidos durante a “Guerra de Canudos”, no sertão baiano do “Vaza-Barris”, contra as gentes do anacoreta Antônio Conselheiro, encontraram os soldados versos que denunciavam o anti-republicanismo dos fiéis seguidores do Conselheiro, como este:

“Sahiu Dom Pedro Segundo
Para o reyno de Lisboa
Acabosse a monarquia
O Brasil ficou atôa”.(Sic).

Existem informações sim, de livretos impressos, que eram vendidos de sítio em sítio, de fazenda em fazenda, de vila em vila... Esses livretos eram verdadeiras súmulas da história sagrada, do catecismo, das novenas, de histórias e biografias de santos, etc. Exitia também a crença antiga no famoso livro de “São Cipriano”, onde ainda resiste a lenda de conter o mesmo orações miraculosas, poderosíssimas, capazes de “envultar” uma pessoa ou de transformá-la, momentaneamente, em qualquer objeto ou animal; e até mesmo de resolver muitas questões amorosas e sentimentais.

Em Augusto Severo (Triunfo Potiguar), região aproximada do Seridó Oriental, houve o caso dos Fanáticos da Serra de João do Vale”, onde dois indivíduos espertos, sugestionados por princípios espíritas, quiseram tirar vantagens da igenuidade dos “matutos”, para viverem á “barriga forra”. Joaquim Ramalho do Nascimento e Sabino José de Oliveira, que após a morte do Padre Manoel Bezerra Cavalcanti, octogenário, passaram a pregar o que aprenderam nas leituras de Allan Kardec e nas “Missões Abreviadas”, e diziam que, quem rezava e cantava não era eles, mas sim o velho vigário. Nisso, ganhavam dinheiro e demais benefícios, e viviam realmente por conta de suas burlescas “sabedorias”. Incomodados, os chefes políticos do município reclamaram para Natal. Contaram toda a história de devassidão, de roubo e vadiagem... Foram pesos, e disso Sabino caía ao chão, possuído pelo espírito, sem sentido, em êxtase. Com rapidez, o Tenente desceu sobre o cabra a espada, numa série de golpes fortes. Na mesma velocidade, Sabino saltou e voltando a verticalidade, exclamou: Pronto, seu Tenente, o espírito já saiu. Voou na ponta da espada”.

Presos, foram conduzidos para Triunfo onde foram submetidos a interrogatório. E só, porque logo foram soltos, desmoralizados pelas declarações prestadas, cujo “auto” de perguntas ainda existe.

Os originários habitantes do Seridó costumavam fazer as suas rezas e orações nas consideradas horas abertas, ou seja: meio dia, meia noite, fim do dia, fim de noite, horas em que, na concepção supersticiosa dos nossos avoengos lusos, o diabo de solta para perdição dos fiéis. Essa prática também era e ainda é adotada pelos adeptos do sincretismo afro-brasileiro, como também por alguns setores da fé espírita. Era no tempo em que o terço, o rosário e o fuzil eram apetrechos indispensáveis em nossos sítios e fazendas. Os primeiros para a proteção do espírito, e o terceiro para a proteção e segurança dos corpos das nossas famílias antigas.

A histórica escassez de sacerdotes e a falta de templos religiosos nos sertões de dentro, associada a sazonalidade das visitas de religiosos aos confins do nosso meio, obrigava o nosso povo, disperso e isolado pelas serras e caatingas, a manter os seus oratórios privativos, forjando á sua religiosidade de maneira individualista, personalizada de acordo com as tradições, costumes e crenças avoengas, evidenciadas pela escolha de santos e santas de devoção, cada um peculiar a um determinado momento, o que não chegava a ser um politeísmo indiano, onde existe um deus para cada minuto do dia, mas era com toda certeza uma diversificação de crendices, dispostas sob vários oragos, sem que houvesse uma hegemonia, onde os patronos dos oratórios variavam sempre, de pessoa para pessoa, de casa pra casa, de comunidade para comunidade, de região para região. Sobre isso, escreveu Gilberto Freyre: É verdade que o Bispo de Mariana apresentou ao Internúncio certas dificuldades muito brasileiras para o cumprimento de ordem tão patriarcal: uma delas, o fato de ainda haver freguesias vastíssimas, algumas de vinte, trinta e até cinqüenta léguas de uma a outra extremidade. De modo que a maior parte da gente não podia ir á matriz ou á igreja para comungar, não uma vez no ano, mas uma vez na vida. Daí a tolerância com a capelas particulares, com os oratórios das grandes famílias patriarcais...”.

Era o sertão da antiguidade, como ainda o é hoje, uma eterna babel de crenças e crendices populares, de sincretismos, baseados e difundidos no consciente coletivo. Eram os tempos do abusão, superstição, agouro, crendices; também definido por Câmara cascudo, nas “Ordernações Filipinas”: “A superstição dos que abusam ou usam mal de várias coisas, por sua natureza desproporcionadas para o fim que intentaram como são: benzer com espada que matou o homem, ou que passou o Douro e o Minho três vezes; passar por marchieira ou lameira virgem; cortar rolos em figueira baforeira; corar sobro em limiar de porta; dar a comer bolo para saber parte de algum furto; ter mandrágoras em suas casas com esperança de ter valimento com pessoas poderosas; passar água por cabeça de cão para saber algum proveito, etc.”.

Os sertanejos, desde os tempos da colonização até os nossos dias, sempre acreditaram em abusões e sempre sustentaram superstições das mais variadas, como cita Barros, sobre a mudança, no século XVI, do nome Terra de Santa Cruz para Brasil: “... mudança inspirada pelo demônio, pois a vil madeira que tinge o pano de vermelho não vale o sangue vertido para a nossa salvação”.

Exemplo significativo de superstição, quem nos dá é um diário encontrado no bolso do Tenente Agripino Câmara, morto na retomada de “sítio” pelos libertadores, na “Guerra de Princesa”, no início dos anos 30, no qual escreveu os dias por ele considerados infelizes para negócios, viagens, guerras, etc.: “MARÇO: 13,19,23 e 28; ABRIL:10,20,29 e 30; MAIO: 10,17 e 20; JUNHO: 4 e 20; JULHO: 5,13 E 27; AGOSTO: 2,13,27 e 31; SETEMBRO: 13,16,22 e 24; OUTUBRO: 3,9 e 27; NOVEMBRO: 6 e 25; DEZEMBRO: 15,27 e 31. É de se imaginar que, nesses dias assinalados, o Tenente não saía de casa, e se o mesmo se encontrasse em alguma atividade fora de seus domínios, permanecia ocioso, sem dar um passo. Nesta mesma revolução, houve um caso digno de nota, pela crença no sobrenatural, que partia muitas vezes do próprio governante do estado aos seus comandados, como descreve José Américo de Almeida: “Na primeira (há falta de munição) usou de todos os expedientes, inclusive o de, num quase ato de desespero, organizar uma coluna de 220 homens de socorro ao Capitão João Costa, sitiado em Tavares, confiando-lhe a proteção ao corpo fechado de um feiticeiro(...) – Descreve o gaiato episódio José Américo de Almeida, nas suas memórias, negando, porém, qualquer responsabilidade na feitiçaria. Ou ainda como conta Ulysses Lins: Graças ás rezas fortes do pai, o velho caboclo Francisco Peixoto (na crença dos vizinhos), que tomando fogo de alma, abria algemas de presos á distância, quebrava as forças dos inimigos...”.

Já desde os séculos XI e XII estavam em evidência, entre místicos e ascetas, devoções particulares ao SCJ (Sagrado Coração de Jesus). Então, no século XII, Margareth Mary Alacoque (1647-1690), religiosa francesa da Ordem da Visitação, em Parayle-Monial, França, teve uma aparição de Cristo (1673), na qual ele ordenou-lhe que propagasse uma devoção pública “de amor expiatório” a Ele “sob a forma de seu coração de carne...”. As linhas doutrinais desta devoção foram ressaltadas em 1675, ano da “grande visão”, quando o Cristo apareceu. Novamente, á freira e explicou: “Veja o coração que tanto amou os homens... Em vez de gratidão, recebo da maior parte (da humanidade) só ingratidão...”.

A partir dessa época, a essa parte, tornou-se comum para os católicos, entronizar os Corações de Jesus nas residências, muitas vezes conjugado com um Coração de Maria. A mesma Maria, mãe de Jesus que, a 19 de março de 1846, teria aparecido pela primeira vez a duas crianças em La Salete: Malaine Calvat e Maximin Guraud, perto de Grenoble, nos Alpes franceses. A mesma Maria que, a 11 de fevereiro de 1858, surgiu em forma de aparição novamente na gruta Massabielle, a Maria Bernarda Soubirous, denominada Bernadete, em Lourdes, velha cidade dos Pirineus franceses. Foi também Maria que, em outra aparição, pela última vez, no dia 13 de maio de 1917, na grita da Iria, em Fátima, Portugal, teria surgido diante de três crianças: Francisco Marcos, sua irmã Jacinta e Lúcia, sua prima, e a eles teria comunicado advertências para toda a humanidade, que foram depois, paulatinamente reveladas, em forma de “segredos”.

O individualismo da nossa gente rural foi um dos traços mais característicos para formação da nossa sociedade, até começos do século XIX, quando então já havia uma definição mais ou menos homogênea de religiosidade, onde intensificava-se, cada vez mais as chamadas Santas Missões, e as visitas de padres e missionários ás regiões mais povoadas e produtivas, se acentuavam. Entendam que esse individualismo não era voluntário, pois as nossas gentes primitivas, mesmo vivendo a lei do isolamento natural que a terra inóspita lhes atirava, eram perfeitamente sociáveis, alegres e receptivas ao bom convívio, principalmente aos sociais e religiosos.

Ainda em 1625, o estadista português Frei Serafim de Freitas, doutor em cânones pela Universidade de Coimbra, em sua obra “De Iusto Império Lusitanorum Asiático”[6], conceituava o imperativo da evangelização e das missões mercantis-religiosas, como “Direito e dever dos reis de Portugal”. A Igreja influenciava, notadamente, nas missões colonizadoras, como sistema único a atravessar oceanos e disseminar, a sua maneira, a “fé” entre o gentio da Ásia, África e Novo Mundo (Américas), estabelecendo capelas e feitorias, impondo o catecismo e instalando ordens religiosas, em propagação do catolicismo romano. A prova disso, da manipulação da Igre ja com os reinos de antanho, é que na caravana que supostamente “descobriu” o Brasil, além de muitos marinheiros experimentados e mestres de navegação, pilotos de extrema habilidade, cartógrafos e de toda a tripulação altamente treinada, vinha também o Frei D. Henrique Soares, alto prelado católico, e dezenas de religiosos, que iriam se fazer nas índias, na conversão do gentio, principalmente na feitoria de Calicute, onde Cabral aportou a 15 de setembro de 1500. Mas observa Simonsen: “O espírito religioso já não era o dominante e cedia lugar ao mercantil, prova-o o próprio nome dado á nossa terra que, de Vera Cruz ou Santa Cruz, como fora oficialmente batizada, teve esse nome alterado para o da riqueza que então se supunha principal. João de Barros, em sua acrisolada fé cristã, já aclamava que ‘por artes diabólicas se mudava o nome de Santa Cruz, tão pio e devoto, para o de um pau de tingir panos”.

Mas, nem só de missões religiosas viviam os nossos padres e frades primevos. Também viviam a vida cotidiana das comunas em que estavam assentados ou de passagem, e contribuíram para os seus crescimentos, cada um á sua maneira, com todos os seus costumes, vícios, manias e virtudes, bem a gosto do patriarcado lusitano. Em 1733, o Padre Francisco da Silva, domiciliado em Olinda, era suspenso de ordens por vir abusando do confessionário para seduzir jovens penitentes. Na Bahia, ficou célebre o Frei Bastos, tão grande na libertinagem quanto na eloqüência; no Rio de Janeiro, ganhou fama não de conquistador de jovens mas de afeminado, que se deliciava em ter conquistado, outro frade, também orador sacro; o apelido Sinharzinha, cuja fama a tradição oral trouxe até nós. Eram esses padres e frades primevos, homens, em primeiro lugar, com todos os sentimentos, defeitos e virtudes esperados em um ser humano normal.

Pelo que podemos compreender, as chamadas “Santas Missões”, no grande semi-árido nordestino, não funcionavam unicamente como artifício dogmático e doutrinário católico, mas, sobretudo como um meio utilizado pela Igreja para prestar certas orientações ás nossas populações rudes, desassistidas e mal informadas. Tais orientações versavam sempre sobre o relacionamento em família, a importância do matrimônio diante de Deus e da sociedade, a educação dos filhos, o respeito aos mais velhos, o amor e devotamento ao trabalho, a abominação a ganância e a usura, a prática constante da caridade, etc., sem que as massas populares fizessem a leitura da Bíblia, pois nem a ela tinham acesso ainda. Eram pregadas, tais missões, não por padres seculares ou jesuítas, mas invariavelmente por frades Capuchinhos, Beneditinos ou Dominicamos, que se utilizavam dos enunciados e postulados dos Concílios de Trento (1545-1563) e de Latrão (1122, 1123, 1139, 1179, 1215 e 1512), mantendo ainda sob o jugo da “crença” e do temor o repúdio ao diabo e ao fogo do inferno, ás populações primeiras do nosso sertão antigo. A respeito da figura sinistra do diabo, o qual chegou ao Brasil nas gáveas das caravelas dos nossos primeiros colonizadores lusitanos, diz Câmara Cascudo: “O Diabo brasileiro é o velho demônio português, com os mesmos processos, seduções e pavores... Oficialmente, todavia, a presença do Cão no Brasil só foi reconhecida e proclamada muitos anos depois da descoberta”. Cascudo, com razão, assinala tal reconhecimento e proclamação oficiais, no Documentário da Visitação do Santo Ofício – dois volumes na Bahia e um de Pernambuco – os quais registram as comunicações do Tinhoso com amigas bruxas – “algumas sabendo até criá-los em vidrinhos, como filhinhos, tornando-se familiar, espécie de diabinho doméstico, servo de feiticeira”.

Naqueles tempos iniciais, conviviam os nossos índios com os maus espíritos da floresta, a quem chamavam de caa-pora, ou os espíritos das trevas, aos quais nomeavam de curupira, ou ainda o Anhanga – espírito só; fantasma, e o Jurupari, conhecido por todas as nações indígenas do Brasil. Até a figura de Exu, orixá do sincretismo afro-brasileiro, é admitido como representação do diabo e, aceitam os ortodoxos que, esse orixá, tratado convenientemente, trabalha para o bem. É representado com um longo rabo e com o sexo á mostra, e muitas vezes com chifres, ou seja, a figura típica do diabo, dentro da caracterização católica... Até o diabo sertanejo tem uma representação típica e singular, na memória coletiva, e apresenta-se com a mesma indumentária dos nossos vaqueiros: chapéu de couro, perneiras, peitoral, luvas, gibão, etc.

Os nossos habitantes originários (índios) não conheciam o diabo, e nem imaginavam eles que, do outro lado do Oceano, em terras muito distantes, havia deuses com outros nomes, que não fossem Tupã, o soberano deus do trovão e das tempestades, a quem eles consideram o Deus de seus corações, que lhes proporcionava colheitas satisfatórias, boa caça e boa pesca...


PADRES E PREGAÇÕES



Muito embora os coronéis e donatários da terra não possuírem uma identificação própria de religiosidade e de “crenças”, obrigavam as “suas gentes”[7] a manterem-se fiéis a todos esses princípios “místicos”, como forma de mantê-las sempre em reverência aos seus ditames, pois afinal, “as massas têm que acreditar e temer alguma coisa que lhes seja superior, conforme falou Hitler, ou que “uma mentira muitas vezes repetida, torna-se uma verdade inconteste”, como sentenciou Goebbels. Até Lampião, em entrevista concedida ao poeta João Mendes de Oliveira, no Juazeiro, vaticinou: “Faço tudo isso porque é o terror que me sustenta na imaginação do povo”(...) “Gosto de sentir o frio das mãos que aperto”.Em compensação, patrocinavam eles as chamadas “santas missões”, ou quaisquer outras manifestações “catequistas”, dandos-lhe todo o apoio necessário, quer fossem logísticos, morais ou financeiros.

Nessas pregações doutrinárias, dogmáticas e sociais, e até porque não dizer, de certa forma, teatrais, tornaram-se famosos os sacerdotes: Frei Vitalle de Frascarolo – Frei Vital (1780-1820), pregador eloqüente e bastante popular nos sertões da Bahia; Padre Ibiapina[8] (Dr. José Antônio Maria Pereira Ibiapina, ex-deputado das cortes, ex-juiz de direito, ex-advogado dos sertanejos pobres; filho de Francisco Pereira Ibiapina, revolucionário fuzilado na Confederação do Equador, e irmão de Raimundo Alexandre Pereira Ibiapina, assassinado pela repressão imperial na prisão de Fernando de Noronha) e, Padre Cícero Romão Batista, para não falar na figura carismática e controversa do anacoreta cearense Antônio Conselheiro, em Canudos, que teve em João Abade o seu preposto, uma espécie de beato de primeira linha, o qual enfrentou as propostas dos padres em visita, liderados pelo Frei João Evangelista de Monte-Marciano, desencadeando a resistência... E, mais recentemente, o Frei Damião, que fez escola no Nordeste brasileiro e criou fama pelo Brasil afora, e que pode ser considerado, sem nenhum favor, como o último dos grandes taumaturgos nordestinos, pois com sua morte, encerrou-se o grande ciclo de religiosos verdadeiramente carismáticos do país dos nordestinos. Com o desaparecimento do Frei Damião também desapareceu um pouco da aura mística dos grandes pregadores e propagadores do catolicismo dos nossos sertões, “desembestados debaixo do nosso sol escaldante”.

Era a religião do sertão antigo uma religião individual, separada da religião romanizada[9], o que só viria a acontecer a partir de 1854. Fazia uma “igreja dentro da igreja”, onde a santidade dos claustros era conspurcada pela torpe ganância, e os próprios filhos do seráfico poverello di Assis eram donos de fazendas e de grandes escravaturas de índios, o que suscitou a ira do Marquês de Pombal, que lhes declarou guerra de morte.

Havia as fronteiras entre o país do céu, a nação infernal e o território neutro do purgatório. Os santos velhos haviam, pois, desertado do mundo. Os santos que os colonizadores lusitanos aprenderam a amar estavam mortos. Mas esse amor atravessara o espaço e o tempo – vivia no coração dos seus descendentes sertanejos, leitores do Flos Sanctorum e da Missão Abreviada, tanto quanto dos livros de cavalaria, onde o herói era santo e o santo, herói.

Assim sendo, determinava-se a vida religiosa celestial (...) As classes inferiores tinham apenas contatos marginais com a igreja oficial, limitados, via de regra, as festas dos dias santificados e aos feriados importantes (...) Rara era a participação nas liturgias sacramentais; até mesmo o batismo e o matrimônio eram negligenciados, em virtude de serem pouco freqüentes as visitas dos escassos sacerdotes ás zonas rurais ou, então, porque os honorários clericais, estavam acima do alcance dos pobres. Apenas as missões ocasionais, normalmente pregadas por padres estrangeiros – em regra geral, quase sempre capuchinhos – levavam a religião ás classes inferiores na escala social.

Era o messianismo a correr solto e desembestado pela caatinga, e a encontrar eco em nosso meio e fazer surgir as figuras dos nossos “santos” e “beatos”, algumas vezes acatados e apoiados pela Igreja, enquanto servissem aos seus interesses; noutras vezes combatidos, perseguidos e exterminados, numa contradição histórica jamais explicada, como foi o caso do Padre Cícero Romão Batista – considerado taumaturgo pelas gentes simples do sertão e heresiarca por alguns autores que cuidam da crítica ao movimento de Joazeiro que, mesmo sem se colocar em evidência o controverso e dúbio “milagre” que operou-se na beata Maria de Araújo, chamamos atenção para um outro milagre, que foi o da transformação do antigo e pequeno arruado de Joazeiro na maior potência econômica do Vale do Cariri cearense. Este sim foi o verdadeiro e arrebatador milagre do velho taumaturgo, o que a Igreja não levou e nem levará em consideração, mas que é reconhecido sempre e sempre será, não como a obra de um “santo” como querem as gentes ainda desinformadas do interior do Nordeste, mas a de um homem profundamente inteligente e de um ser político perspicaz e astuto, que imprimiu no Joazeiro do Norte a sua obra prima.

Está escrito no livro de Deus que ninguém há de conhecer jamais o vôo da águia no céu, o rastro da serpente na pedra, o caminho do homem na mocidade. Quer isto significar desígnios e mistérios impenetráveis da natureza.

A Igreja Católica Apostólica Romana, na ortodoxia dos tempos iniciais, foi sempre ligada e movida por valores messiânicos. Na Capitania do Rio Grande do Norte, logo após o massacre de Cunhaú, nos tempos do acirramento de ânimos da contra-reforma, o povo sustentou, por muito tempo, a idéia e propagação de um suposto milagre ali ocorrido. Contam que, chegando uma tropa de Pernambuco no intuito de dar proteção aos portugueses ali residentes, e não tendo chegado a tempo de evitar o massacre comandado por Jacob Rabbi, foi a tropa aquartelar-se no mesmo engenho de açúcar em que tivera lugar a carniçaria, fortificando-se ali e principiando a tomar represálias do inimigo. Mas a guarnição do Forte Keullen era superior, e pedia a prudência que se abandonasse uma posição impossível de sustentar; ora, como motivo para evacuá-la, alegou-se uma circunstância, que ou foi acidentalmente engrandecida e interpretada como milagre, ou não passou de um artifício inventado para persuadir a mudar de quartéis homens, que, cegos diante do perigo, queriam antes deixar-se ficar debaixo de um bom telhado, do que retirar-se para os pantanais. Conta a história: “De noite ouviu a sentinela um ruído como o de passos de muitos que avançavam cautelosos; deu-se rebate, tocou-se a reunir e os portugueses ficaram em armas á espera de um ataque até ao dia, quando nem rasto nem notícia de inimigo pôde descobrir-se. Duas ou três noites sucessivas se repetiu a mesma coisa, até que concordaram todos em que era advertência milagrosa, que lhes faziam talvez as almas dos seus conterrâneos assassinados naquele mesmo sítio. Retiraram-se pois para as lezírias, onde fortificaram um lugar só acessível por um lado. Mal tinham completado o seu entrincheiramento quando na Bahia da Traição desembarcaram cerca de quatrocentos holandeses, que marcharam no segredo da noite a surpreendê-los no engenho: achando o ninho vazio, seguiram a trilha dos portugueses até o seu novo posto, e ali os investiram, com tanta desvantagem porém, que repelidos com perda considerável deram-se por felizes como poderem acolher-se ao Forte Keullen.[10]

É bom que tenhamos sempre em mente que, milagre, verdadeiramente, é um efeito, não de leis sobrenaturais, mas de leis naturais. Só existe milagre para aqueles que não entendem o significado da lei natural. Milagre é qualquer ocorrência que parece contrária á natureza e para a qual nenhuma causa natural é evidente.[11]

Segundo Helena Blavastky, (in A Iíris Revelada), não há milagres.Tudo o que acontece é o resultado da lei eterna, imutável, sempre ativa. O milagre aparente não é senão uma operação de forças anatômicas, ás quais o Dr. B. Carpenter, homem de grandes conhecimentos, mas pouca sabedoria, chama ‘leis bem demonstradas da natureza’.

Sincretismo[12], milagres, e toda a mística messiânica que norteava os destinos religiosos das gentes do sertão, revestiam-se nas famosas “promessas”, feitas a santos tais e quais que, atendendo demandas do suplicante, teriam que receber uma recompensa, que sempre era paga materialmente, ou através de terços, rezas, rosários, novenas, missas, ladainhas, foguetório e de ex-votos, simbolizados por cópias de partes do corpo talhadas na madeira, cera, gesso ou no barro, como prova de que aquela promessa foi “valida”, e que aquela parte do corpo, antes enferma, mostrava-se sã. A questão dos ex-votos é muito antiga e vamos encontrá-los, primeiramente, na Bíblia, no Antigo Testamento, no Livro de Samuel, capítulo 2 versículo 6[13]. Portanto, o engendramento de promessas e pagamentos com ex-votos não é primazia da religião católica, como alguns protestantes ainda pensam, mas sim dos tempos das tribos de Israel, que os utilizavam desde os seus primórdios.

Roger Bastide[14] observa que a sociologia, desde o seu nascimento, tinha ligado os valores religiosos ás estruturas sociais, ao citar o célebre Marx:

“A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro lado, o protesto contra essa miséria. A religião representa o lenitivo da criatura atingida pela desgraça”.

A citação de Marx referida por Bastide, prende-se á crítica da filosofia alemã naquela época e estabelece outros critérios de afetação que, em geral, não são citados ou conhecidos, e vai mais adiante:

“A verdadeira felicidade do povo exige que a religião seja suprimida na medida em que ela representa a felicidade ilusória do povo. Exigir que se renuncie ás ilusões concernentes á nossa própria situação é exigir que se renuncie a uma situação que tem necessidade de ilusões”.

Também observa Emília Viotti da Costa, escrevendo sobre os primórdios da Igreja e a sua relação com a escravidão:

“A Igreja bem cedo estabeleceu um compromisso entre a escravidão e o cristianismo, encontrando na tradição ocidental os argumentos para justificar a escravidão de negros (...) Aqueles que se opunham ao cristianismo mereciam ser escravizados – era a ‘ guerra justa’. Prossegue: “A ética protestante que enfatizava a vontade individual, a responsabilidade, a disciplina, o ascetismo e a liberdade individual – típica da classe média americana – não tinha a mesma atração para os latifundiários brasileiros”.

Portanto, a religiosidade no Seridó, nos tempos da colonização, não era assim tão importante e indispensável como outros elementos indispensáveis para o seu desenvolvimento, onde a própria Igreja só interferia naquilo que ra de seu interesse, e a prova disso é que, de 1719, ano provável do estabelecimento das primeiras datas de sesmarias das ribeiras do Totoró e Maxinaré, ao ano de 1808, quando foi então requerida á provisão para a construção da primitiva capela de Sancta Anna, pelo Capitão-mor Galvão, não temos notícias de requerimentos outros solicitando construções de capelas em fazendas e comunidades da nossa região. Do início do repovoamento até o ano de 1808, foram-se 89 anos. Isso nos mostra que, muito embora os nossos primeiros repovoadores tenham sido homens católicos, não tinham eles um espírito assim tão forte de socialização religiosa, pois a construção da nossa primeira capela, com quase nove décadas de atraso, dá a tônica da individualização dos nossos primeiros repovoadores.

Mesmo assim, pode-se assegurar que, a primeira afirmação religiosa, de fato e não formal, ocorrida na região dos “Currais Novos”, remonta ao ano de 1777, quando pela primeira vez tomamos conhecimento de que o coronel Cypriano Lopes Galvão, nesse ano se grande seca, tenha feito uma promessa a Nossa Senhora Santana de que, construiria uma capela em seu orago, caso chovesse; e a segunda, em 1808, 31 anos depois, quando o capitão-mor Galvão, seu filho primogênito, para dar cumprimento e “pagamento” a promessa feita por seu pai, constrói a capela no local exato onde achava-se seu pai, quando fez a referida promessa. Portanto, o desejo de construir a capela em orago a Santana foi, inicialmente, do coronel Cipriano Lopes Galvão que, incumbiu o seu filho de tal encargo, o qual cumpriu fielmente.

O primeiro padre curador da capela de Santana dos Currais Novos foi o padre Tomás de Araújo Pereira, Vigário Colado da Matriz de Nossa Senhora da Guia, do Acari.

O primeiro vigário da freguesia de Santana dos Currais Novos, não foi o padre Manuel Joaquim da Silva Chacon, como defendem ainda alguns, mas sim o padre Joel Esdras Lins Fialho, porém, a missa inaugural foi oficiada pelo padre Francisco de Brito Guerra, Cura do Seridó, ficando a capela sob sua jurisdição até o ano de 1835. A 20 de fevereiro de 1884, foi criada oficialmente a Paróquia de Nossa Senhora Santana dos Currais Novos, oficializada pelo Bispo de Olinda, D. José Pereira da Silva Barros.

O Padre Manuel Joaquim da Silva Chacon foi o nosso 2º vigário, tendo assumido o vicariato em 1888, quando ordenou-se no Seminário do Recife, com 60 anos de idade, e foi em sua curta administração que o atual templo foi construído (de 1888 a 1889), tendo o vigário falecido em 1890. O Vigário Manuel Joaquim ficou somente dois anos a frente da nossa paróquia.

Por quê o Padre Manuel Joaquim só veio a ordenar-se aos 60 anos de idade?

Simplesmente porque Manuel Joaquim havia cursado o Seminário do Recife em seus tempos de juventude, mas preferiu casar-se em Curais Novos, onde constituiu família, composta de vários filhos. Ao enviuvar, já sendo avô de vários netos, retornou ao Seminário do Recife, onde completou o curso antes iniciado, pagando as disciplinas restantes: filosofia e teologia, ordenando-se em seguida. A respeito disso, a título de curiosidade, um seu neto fez o caminho contrário, ou seja, o padre Antônio Chacon, que aqui foi diretor do Ginásio Agrícola, no início dos anos 70, era padre e apostatou para casar-se, portanto padre, neto que foi de padre.

O primeiro batizado realizado na nova freguesia de Santana dos Currais Novos, deu-se a 9 de janeiro de 1886, e foi oficiado pelo então seminarista Manuel Joaquim da Silva Chacon, mas quem assinou como celebrante foi o nosso primeiro vigário, Padre Joel Esdras Lins Fialho. O garoto, objeto deste primeiro batizado foi João Justino, filho de Manuel Justino e de dona Maria Justina da Conceição, tendo servido como padrinhos, o casal Capitão Laurentino Bezerra de Medeiros Galvão/dona Francisca Maria de Medeiros Galvão.

A 9 de agosto de 1903, 17 anos após o início do seu funcionamento, no vivariato do Padre Luiz Borges de Salles, Currais Novos recebe sua primeira visita pastoral, na pessoa de sua Excia. Revma. Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques, Bispo da Paraíba, aqui tendo permanecido por 4 dias. Na oportunidade, foi saudado no “Boi Choco”[15], onde era esperado por grande multidão, tendo sido saudado com um grandioso discurso feito pelo rábula e professor José Francisco Bandeira de Melo[16].

Nesse período em que o Bispo Dom Adauto passou em Currais Novos, houve um fato marcante e digno de nota: recebeu ele na Casa Paroquial (Casa de Assistência aos Capelães), a Comunicação Oficial da Nunciatura Apostólica nº 936, datada de 28 de julho de 1903, do Revmo. Cardeal E. Merry Del Val, comunicando-lhe oficialmente a morte do Papa Leão XIII e a respectiva eleição do Cardeal José Sólon, que tomou o nome de Pio X (1903-1914) como seu sucessor.

Outro fato marcante nesse lustro de tempo, se deu no dia 24 de dezembro de 1908, na festa de Natal, ás 9 horas da noite, quando foi inaugurado o “Monumento Centenário”, obelisco construído no cruzamento das ruas Lula Gomes e Av. Cel. José Bezerra (Laurentino Bezerra, naquela ocasião). O monumento é uma homenagem ao centenário de Currais Novos como município – (1808-1908), tendo ali também sido colocada uma placa, em 1970, como marco comemorativo do seu cinqüentenário como cidade (1920-1970). O referido monumento foi construído a partir de uma campanha feita pelos cidadãos Vivaldo Pereira de Araújo e Ulisses Telêmaco de Araújo Galvão, através do Jornal “A Voz Potiguar”, com apoio do Padre Francisco Coelho e do Presidente da Intendência Benvenuto Pereira de Araújo, e membros: Coronel José Bezerra de Araújo Galvão, chefe político; Major Sérvulo Pires de Albuquerque Galvão, deputado estadual pelo município; Coronel Antônio Rafael de Vasconcelos Galvão, Luiz Ulisses da Circuncisão Lula, Secretário. No ato da inauguração, discursaram, pela ordem: Padre Francisco Coelho, Vivaldo Pereira de Araújo, Esperidião Elói de Medeiros, Francisco Cícero da Costa, Francisco Gonzaga Galvão, Ademar Romero de Medeiros, Salustiano Aureliano de Medeiros, José Francisco Bandeira de Melo, Antônio Edmundo de Albuquerque, João Alfredo Pires de Albuquerque Galvão, Luiz de Medeiros Galvão Neto e Luiz Bezerra de Araújo Galvão, tendo a solenidade encerrado-se á meia noite, com missa inaugural ao pé do monumento.

Em 1904, foi desmembrada da Paróquia de Santana a freguesia de São Sebastião de Flores (Florânia).


A doutrina luterana quebra a hegemonia católica na “vila dos Curraes Novos”.


“Vias tuas, domine, demonstra mihi et semitas tuas edoce me”.[17]


O catolicismo predominou em Currais Novos, como religião e sistema religioso único, até o ano de 1901, quando aqui chegou, oriundo de Jucurutu, o Sr. Manoel Tomás de Araújo, que veio aqui residir e prestar serviços na montagem e manutenção do primeiro locomóvel[18] a se instalar no município, recém adquirido pelo fazendeiro Manuel Francisco de Maria[19], que foi montada na sua propriedade, no Totoró de Baixo. Chegou aqui com Dona Ritinha, sua primeira esposa e os filhos leocádio Taumaturgo de Araújo (casado em primeiras núpcias com Julieta Pires e em segundas com Toinha); Maria Deocleciana de Araújo (casada com Laurindo, filho de Laurindo Escrivão) e Olívia Deocleciana de Araújo (casada com Manuel Francisco de Araújo, seu tipógrafo).

Desde a segunda metade do século XIX que aqui já residia um protestante chamado Manuel de Barros Vasconcelos (Neco Barros), oriundo de Guarabira-PB, onde fora sacristão, e que foi o grande responsável pela conversão de Manuel Tomás ao seu sistema religioso. Enviuvando, Manuel Tomás casou-se com Maria Batista, filha de Mestre Batista ou Pai Batista (João Batista da Silva), e consegue a adesão de toda a família para o protestantismo, o que deve ter causado um reboliço muito grande na Vila. De Manuel Tomás e Maria Batista de Araújo, nasceram os seguintes filhos: Jonas Taumaturgo de Araújo (casado com Laudicéia Lucas), Judite Batista de Araújo, Ciro César Batista de Araújo (casado com Judite Bento), Valdemira Batista de Araújo, Dalila Batista de Araújo (casada com Geraldo Inácio Pinheiro) e Izequias Batista de Araújo (que morreu solteiro). Para professar seu cedo religioso e arrebanhar adeptos, fez de sua casa (a mesma casa em que hoje reside seu filho Cezar, na Av. Dr. Sílvio Bezerra), um centro de convergência protestante, onde levantou uma espécie de torre, em seu platibanda, fazendo de sua residência o templo para as reuniões e cultos, garantindo a segurança dos mesmos de rifle nas mãos. Vale salientar que, Currais Novos naqueles tempos, era uma Vila totalmente comandada pelos coronéis e grandes fazendeiros que, dominavam a região de todas as formas e maneiras, tentando manter o catolicismo como religião uma e seus ditames políticos sem á presença, por vezes, de um sistema oposicionista mais contundente, na confirmação do padroado, o que foi praticamente impossível, pois se têm notícias de que as primeiras pregações protestantes em terras curraisnovenses, deram-se ainda nos idos de 1883, quando do grande avanço protestante para o Norte do país, realizadas por missionários e pregadores que por aqui passavam, em difusão de suas doutrinas, em demanda dos grandes centos nordestinos.

No ano de 1923, o Presbítero Montenegro realizou um culto cerimonial no Grupo Escolar Capitão-mor Galvão, tendo como intermediadora para a utilização da escola, a Profª. Estefânia Mangabeira, que por sinal era evangélica.

O embrião lançado por Neco Barros e Manuel Tomás, só viria concretizar-se de maneira organizada, em outubro de 1942, quando o Ver. Abel Ciqueira batizou os irmãos João Batista da Silva, Severina Batista e José Rangel da Silva, o que, de certa maneira, fez iniciar-se o Movimento Presbiteriano de Currais Novos.

Foi a partir de Manuel Tomás que o protestantismo se ergueu e tomou corpo e forma em Currais Novos, quebrando assim a hegemonia católica romana, mesmo porque a 2ª tipografia da Vila era de sua propriedade, aonde chegou a editar pelos menos dois jornais: “O Batel e “O Progresso”, auxiliado pelo genro Manuel Francisco, na parte de impressão, assumindo Manuel Tomás quase todas as funções dos seus periódicos, atuando desde a edição na oficina até a própria distribuição aos assinantes.

Em 1923, travou uma questão religiosa com o vigário Padre Pedro Paulino Duarte da Silva, para o qual fez publicar um panfleto inicial intitulado “A Luz da Verdade”, inclusive tendo, posteriormente, desafiado o padre para uma discussão pública sobre religião, ao que o padre não deu resposta, resumindo-se apenas a comentar os citados boletins do púlpito, nas missas dominicais, não referindo-se a Manuel Tomás de Araújo, mas a M.T. de Araújo, para não provocar mais polêmicas, pois reconhecia em Manuel Tomás um homem capaz de tudo para fazer prevalecer o seu pensamento. Um dos boletins referidos (A Luz da Verdade), pode ser encontrado na íntegra, no livro “A Pedra mais Preciosa”, do Pastor Daniel Rodrigues Martins, da Igreja Presbiteriana.

O Dr. Antônio Othon Filho, em seu livro “Meio Século da Roça à Cidade”, fala de uma outra questiúncula que teve Manoel Tomás com o Padre Antônio Brilhante de Alencar, quando para este escreveu um folheto intitulado “Como se desmascara um tartufo”. Segundo o Dr. Njtom, pelas expressões e grafia utilizadas no folheto, não teria sido Manoel Tomás o seu autor, mas sim o professor Francisco Gonzaga Galvão, que o escreveu a seu pedido.

Questiúnculas religiosas domésticas sempre existiram em toda a história do Seridó antigo, e por todo o Nordeste. Porém, houve também a integração entre líderes de sistemas religiosos antagônicos, se não no tocante as religiões, mas por injunção de afinidades e amizades. E é bem verdade que o Nordeste não conviveu somente com o clima de tensão que sugeria o confronto entre católicos e protestantes, mas até com a boa convivência dos contrários. Muitos exemplos surgem a cada dia, sendo identificadas até células ecumênicas em algumas regiões. Foi o caso da amizade que uniu D. José Adelino Dantas, seridoense da “Luíza” (hoje São Vicente) que, quando Bispo Diocesano de Garanhuns – PE, ao pastor protestante professor Uzzae – dois pastores de religiões “antagônicas” a disseminarem a fé em rebanho comum e em solo único.

O caso de D. José Adelino Dantas não é o único, pois casos como esse repete-se a cada instante da vida. Aqui mesmo em Currais Novos, quando da restauração da Igreja Batista regular (hoje Igreja Batista Fundamentalista), o então Pastor Benjamin Elmer Peterson, norte-americano, fez inúmeras amizades no seio da nossa população, inclusive com o padre José Dantas Cortez.

O Pastor João Batista de Moura, por exemplo, que vem realizando uma grande obra, não somente na Igreja Presbiteriana, de onde á natural, mas, sobretudo na grande obra evangélica do Seridó, tem sempre procurado aproximar as várias denominações religiosas cristãs, e como exemplo disso, podemos exemplificar a celebrações das exéquias do ex-prefeito Gilberto Lins, ocorridas na Matriz de Santana, onde o referido pastor, ás vistas do Bispo Dom Jaime Vieira Rocha, proferiu do altar um discurso radiante, inspirado, que comoveu a todos. Isso mostra e prova que o cristianismo ainda poderá voltar a ser uma unidade.

Com o passar do tempo, o movimento protestante de Currais Novos tomou novos impulsos, e mais crentes foram a ele se incorporando, e hoje além das Igrejas tradicionais, como a Prebisteriana, Assembléia de Deus, Batista e Adventista, inúmeras outras somam-se, numa mostra de que a heterogenia religiosa estabeleceu-se em nosso município.

Ainda sobre a figura de Manoel Tomás de Araújo, que era protestante ferrenho, e que foi acusado – a par do seu radicalismo religioso – de destruir símbolos católicos, como cruzes, cruzeiros, etc., existem três fatos curiosos, dignos de nota, que depõem em contrário as acusações que lhes foram feitas: 1) Foi Manoel Tomás que construiu um altar com gruta, em honra de Nossa Senhora de Lourdes, ainda hoje existente á entrada da Matriz de Santana, na época do vicariato do Padre Ulisses Maranhão. 2) O aumento da torre da referida matriz também foi realizado por ele, quando da instalação do relógio doado por “seu” Galvão; 3) Manoel Tomás, como pedreiro, era constantemente contratado para construir e realizar reformas em túmulos, com ornamentos católicos, em nosso cemitério de Santana, sem destruir qualquer símbolo católico romano ali existente, e ainda mais porque, em seu jornal “O Progresso”, redigiu e publicou todo o relato da visita pastoral do Bispo da Paraíba a Currais Novos, onde destacou, do início ao fim, o simbolismo católico romano, na visão de um articulista imparcial.

Mas, assim como no catolicismo primevo, também no protestantismo inicial aconteceram fatos que, não tão bem regulados pelos provedores de suas religiões, se não depuseram contra á instituição, pelo menos colocaram em dúbia análise as figuras de seus pastores e pregadores. No Brasil, esses fatos começaram logo na época do governo holandês nos estados ocupados do Nordeste, principalmente em Pernambuco, onde se disseminou o protestantismo, sob os auspícios do governo flamengo. Gilberto Freyre observa: Não eram só mulheres de cor – negras, mulatas, cabrochas – que aqui despertavam a curiosidade pelos prazeres exóticos nos homens ruivos, até mesmo nos pastores da Igreja Reformada, um dos quais tornou-se célebre por sua vida imoral”.

Excetuando-se o catolicismo e o protestantismo como sistemas religiosos cristãos, não temos notícias de que outros sistemas religiosos tenham aqui se insinuado, nos últimos 100 anos, mesmo sabendo que houve os que tentaram se afirmar em outras práticas religiosas, nos tempos do nosso repovoamento, principalmente o judaísmo, pelos “cristãos-novos”, ainda inconformados com a nova religião que foram obrigados a converterem-se, mas que nunca abjuraram por completo os seus credos originários, ma sobre isso não há informações seguras, que mereçam maiores registros, embora tenhamos ciência de que a maioria dos nossos genearcas tinham sangue israelita nas veias.

Também não existem dados oficiais de que no século XIX existissem maçons operantes na região dos Currais Novos, como já existiam e eram bastantes atuantes em outras regiões do nosso estado, principalmente Natal e Mossoró. O movimento maçônico só chegaria a Currais Novos, de fato, em 1968, quando foi instalada a sua Loja regular, abraçando e congregando os seus muitos e valorosos adeptos. Mas, antes de 1968, sabe-se que as exéquias do ex-prefeito Tristão Barros, assassinado em Natal e sepultado em Currais Novos, foram feitas pela Maçonaria da capital, o que conjectura-se ter sido ele maçom.

As práticas decorrentes do misticismo africano, que aqui revestiam-se no candomblé, xangô, tambor-de-mina, candomblé-de-caboclo, babaçuê, umbanda, catimbó, etc., que com certeza aqui chegaram com os primeiros escravos que puseram os pés em nossa ribeira, e são tão antigas quanto as práticas do catolicismo, pois as dinvindades africanas foram literalmente incorporadas ao catolicismo, como maneira de burlar a severa vigilância do clero romano, como por exemplo: Deus era Oxalá (expressão oriunda da acomodação ashanti, do árabe antigo, onde escreve-se em sha allah – “se Deus quiser” – “assim Deus queira”. Xangô, dinvindade do fogo e do trovão, é representado por São Pedro e São Jerônimo. Oxossi, senhor da floresta e da caça, era representado por São Jorge e São Sebastião; e Iemanjá, rainha do Mar, era representada pela Virgem Maria.

Nesse sincretismo afro-brasileiro antigo, achava-se o embrião de um “espiritismo” entrelaçado, ora com as práticas africanas, ora com as práticas indígenas da pajelança, das curas e das cerimônias nos terreiros de “caboclos”, associado ao estágio de “magia”, sempre presente em todas as práticas voltadas para a mágica do sobrenatural.

Se o antigo modelo fundamentava a realização das curas unicamente na habilidade e na capacidade pessoal, o novo tipo transfere toda a execução do tratamento e a responsabilidade de cura para os “espíritos de caboclos” ou de pretos velhos que são seus guias. Além disso, sem recorrer a curandeiros e feiticeiros funcionavam domesticamente as rezadeiras que se encarregam, através de orações, de tratar as doenças, resolver problemas amorosos e outros casos que lhe são apresentados. Note-se que, até as orações, como integrantes do sistema cristão, entram no sincretismo, como forma de interpor Jesus Cristo a todas as práticas convencionadas pelos adeptos, que seguiam a máxima popular nordestina: “pra quem crer em diabrura/água do pote também cura”.



















[1] Cit. Perdigão Malheiro ´- “A Escravidão no Brasil”. Pg. 163.
[2] Prática simbolista euroéia (principalmente da Península Ibérica), que perdeu o uso logo após o Concílio Vaticano II – Segundo Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala”, havia negras que portavam pendurada ao pescoço, saquinhos com a Pedra de Ara. Segundo Câmara cascudo: “...E para que a bala conseguisse penetrar no corpo de um deles, era necessário que a arma fosse carregada com um projétil que tivesse a noite sob a pedra d’ara”. – Referindo-se certamente aos lobisomens.
[3] O catolicismo perdeu muito do seu simbolismo originário, o que não ocorreu com outros ramos da própria religião, como o ortodoxo e o maronita, que ainda mantém, em escala regular, alguma coisa da simbologia originária, da primeira Igreja da Antioquia, fundada pelo apóstolo Paulo, nos primeiros tempos da religião.
[4] Sebastianismo – Movimento messiânico que teve origem quando do “desaparecimento” do Rei de Portugal D. Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, no ano de 1578, em que acreditavam os seus seguidores no “desencantamento”, que traria de volta o Rei que, restabeleceria um novo reino (Pedra Bonita).
[5] Para os sebastianistas, “lei do cão” significava aceitar, viver e colaborar com o regime republicano. Para a seita, os termos maçom, republicano e abolicionista, representavam a mesma coisa, pois viam na figura do Rei ou do Príncipe, o representante direto de Deus na terra.
[6] “Do Justo Império Asiático dos Portugueses”.
[7] As “suas gentes” referidas pelos coronéis e patriarcas eram, com certeza, seus filhos, genros, noras, netos e, demais membros da família que viviam ás suas expensas, ora residindo na mesma casa, ora apenas recebendo destes orientações, quer fossem políticas, sociais, econômicas, morais, sentimentais, etc. Compreendia também as “suas gentes” os moradores, vaqueiros, tangerinos, alugados, meeiros, agregados, trabalhadores braçais do eito, e os escravos forros e cativos, além de um sem número de pessoas nas vilas, que dependiam dos seus favores, e dezenas e dezenas de afilhados.
[8] Foi no escritório do então advogado Dr. José Antônio Maria Pereira Ibiapina, no Recife, que o senador, Padre Brito Guerra fez o seu testamento.
[9] Romanização do catolicismo sertanejo – Para Bastide, o conceito de “romanização” consiste em: 1) a afirmação da autoridade de uma igreja institucional e hierárquica (episcopal) estendendo-se sobre todas as variações populares de catolicismo folk; 2) o levante reformista do episcopado, em meado do século XIX, para controlar a doutrina, a fé, e as instituições e a educação do clero e do laicato; 3) a dependência cada vez maior, por parte da igreja brasileira, de padres estrangeiros (europeus), principalmente das congregações e ordens missionárias, para realizar a “transição” do catolicismo colonial ao catolicismo universalista, com absoluta rigidez doutrinária e moral; 4) a busca desses objetivos, independentemente e mesmo contra os interesses políticos locais.
[10] Cit. “Transações no Potengí” – Cast. Luc. Pg. 92/93 – História do Brasil – R. Southey.
[11] Citação extraída do “Manual Rosacruz”, pg. 292 – 25 ª edição norte-americana – 1ª edição da Grande Loja do Brasil – Janeiro de 1988.
[12] Ás voltas com o sincretismo, e para ganhar a simpatia dos negros cativos, a própria religião católica canonizou São Benedito, o preto mouro, como foi conhecido, em 1807, pleno auge do escravismo. Nasceu o santo em 1526, em Messina, Sicília, filho de escravos de descendência etíope e foi beatificado pelo Papa Clemente XIII, em 1763.
[13] Conta que, estando os Filisteus com a Arca Santa e tendo caído sobre as suas terras uma praga de ratos e uma endemia de tumores, procuraram os seus sacerdotes e adivinhos e perguntaram-lhe o que fazer. A resposta foi a de que a Arca Santa não deveria ser devolvida sem uma reparação. E qual a reparação? Seria a de mandar fazer em ouro cinco tumores e um outro tanto de ratos devoradores que arrasasaram o país.
[14] Roger Bastide – Professor da Faculdade de Letras, na Sorbone e da Escola de Altos Estudos (Paris).
[15] Corresponde atualmente a Rua João Pessoa.
[16] José Francisco Bandeira de Melo (Zé Bandeira) – Rábula e professor, antigo proprietário do Sítio “Victorya”, no Maracarjá, onde manteve uma escola particular, onde ensinava português, francês e latim,, sendo um grande orador e dominador de assistência, quando utilizava-se da arte demonstênica (termo seu). Tinha Zé Bandeira uma mente aguçadíssima, pensando muito além do seu tempo. Merece um estudo mais abalizado sobre a sua vida. Era bisavô de Chatô (Chateaubriand Bandeira de Melo Sobrinho) e tio do grande jornalista e fundador dos Diários Associados, Francisco de Assis Chateuaubriand Bandeira de Melo.
[17] “Mostrai-me Senhor os vossos caminhos e ensinai-me as vossas veredas” – Salmo 24.
[18] Máquina a vapor utilizada no descaroçamento de algodão. A propósito, esta máquina foi vendida posteriormente pelo seu filho José dos Anjos, a seu Tomás Galvão, que a desmontou em 1947.
[19] Pai, dentre outros, do Cel. Manuel Aleixo de Maria e de dona Maria Tutu. Foi o Sr. Manuel Francisco de Maria o genearca da família “Dos Anjos” da nossa região.

O PAÍS NORDESTINO - E a sua incomparável geografia de azuis.


“Que eloqüente sermão é por si mesma toda essa terra...”.
(Missionário anônimo)


Pela pena arguta de Nertan Macedo, um caririense do Crato – biógrafo, ensaísta, escritor e romancista da melhor cepa – foi reproduzido, como numa obra plástica, o país nordestino e a sua incomparável geografia de azuis – onde retrata, em igual tela policromática, detalhando cada parte e cada situação desse imenso continente, rico em contrastes, como a terra, o povo e suas maiores e melhores tradições. Longe, muito longe de ser o País de Cocagne, de Pieter Brueghel, e de insinuar nas terras reinos e distantes de Passárgada, imaginada, sonhada e desejada por Manuel Bandeira, era e é, certamente, o país de homens de diversos ofícios e pecados, como na conceituação exata de Cortez, quando expôs ao mundo antigo o modo de vida das gentes sudamericanas – sem pecado e sem juízo – “abaixo do Equador” – nos tempos da colonização espanhola – “ultra equinoti alem non peccati”.[1]

Descreve Nertan: “Nessa ardente geografia, de um país lento e triste, em latitudes de grandes, fabulosos azuis, gravados em magníficos céus, feitos para silêncios e contemplações perpétuas. País onde o resto do mundo, inclusive o maroceano, é apenas pressentido, vagamente sabido. Muito além das Terras Grandes p do Rio de Janeiro,d a Bahia, de Roma e de Jerusalém. Longínquo país, a morada dos nordestinos...

“O anoitecer é belo, no sertão”. Triste, doce o vento, senhor do ar e da natureza, no seu afagar sutil. A noite fascina, em qualquer parte do mundo. Mas, aqui, aqui é a minha infância, que adormeceu outra vez, o sono velado de mil histórias e lendas, de mil arcanjos fulgurantes, de mil heróis sinistros, de mil encourados luminosos, parceiros do Príncipe e das suas Trevas e Labaredas.

Miremos as amplidões. Acima das raras nuvens compactas, que se acinzentam em manchas turvas, ver-se-á, como flutua e flui, noite adentro, o tempo”.

“Na curva, extemporâneos, fora desse mundo, aparições do mundo velho, o despontar de vaqueiros, em alígero chouto, de pouca poeira. Trazem as faces abrasadas, nascidos que foram ao sol e ao vento, erguendo a mão poderosa, de cujo pulso pende a chibata de couro, oscilante, para tocar na aba do chapéu, também de couro, compassando a saudação dos antigos: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!... – Para sempre seja louvado!”. “E, prosseguindo, deixando no ar a marca da passagem: cheiro de couro suado...”.

Era um país despovoado e obscuro, o país dos nordestinos, a ponto de Euclides da Cunha, autor do épico “Os Sertões”, afirmar categórico: “O Sertão é o homizio” – justificando, num estereótipo, todo o continente do semi-árido, perdido no intermúndio, como refúgio e velhacouto daqueles que não queriam ser encontrados. Viu e sentiu Euclides, em Canudos, como viram e sentiram todos aqueles que o contemplaram boquiabertos, pela primeira vez, do altiplano aberto que se descortina na fronteira Oeste do cariri cearense com a Paraíba, num ângulo em que os golpes de vista confundem-se, e nos mostra a mais obscura fronteira dos nossos sertões... Visto da mesma forma como viu o Frei Caneca quando contemplou o sertão aberto do Seridó, na região das Parelhas (quando dirigia-se á Conceição do Azevedo, ‘Jardim do Seridó’ – em propaganda da Confederação do Equador – 1824), quando do alto da muralha da Borborema, ainda do lado paraibano, vislumbrou o chefe revolucionário toda a beleza da região Sul do estado rio-grandense.

O Seridó, como civilização integrante desse imenso país, é uma terra a parte. É uma terra de contrastes múltiplos, não somente pela geografia de suas paisagens abertas, monótonas e acinzentadas de sua caatinga, onde em algumas regiões já apresenta-se o estado de desertificação acentuado, mas sobretudo nas variações climáticas bruscas, a ponto de, no mês de julho chegarmos a 26º ou 30º á sombra, no “pingo do meio dia”; e a noite, após as vinte horas, tornar-se a temperatura amena a prazerosa dos 22º ou 23º, chegando ao ponto de, ás vezes, baixar ainda mais, numa típica climatologia das regiões desérticas da África. Tem o sertão do Nordeste, principalmente o seu semi-árido, duas estações: período de seca e período de chuvas, o que não se pode confundir nunca com verão e inverno, vez que a seca para nós não é uma estação climática, mas sim a variante trágica, com a qual convivemos desde o início da nossa colonização; e o período de chuvas, intermitentes, o que não se pode chamar de inverno, mas sim dádivas caídas dos céus para refresco das terras incendiadas pelo sol e para salvação das nossas sementes de criação.

“A seca é, porém mais um fenômeno social que mesmo uma conseqüência puramente meteorológica. As condições de vida estabilizadas em determinada região, a importância da população, a natureza rendimento do cultivo do solo são fatores que pesarão muito mais intensamente na avaliação do desequilíbrio econômico provocado pela seca que as contingências meteorológicas, embora se apresentem elas mais severas em outras regiões que, por mais desertas, são menos aproveitadas e menos civilizadas”. Diferente da “monção” indiana que, periodicamente, leva a chuva para as regiões mais áridas do continente indiano, as chuvas do semi-árido nordestino são inconstantes, irregulares e muitas vezes incertas e desacreditadas.

Tem também o país dos nordestinos terras de belezas “trágicas”, encravadas a partir do Sul da Bahia e Norte de Minas Gerais, e mesmo Norte do Espírito Santo – sim, porque essas regiões também fazem parte do país nordestino. Lá, na testa das Gerais, resiste o Raso da Catarina, que na descrição de Nertan, “é um deserto dentro do deserto”. Trágico, exsicado, impenetrável, cinzento, atmosfera de fornalha, a filial do inferno...

O excepcional Ranulfo Prata, biógrafo de Lampião, assim o vislumbrou: “O Raso da Catarina é uma extensa região de dezenas de léguas, erma e inóspita como nenhuma outra, que fica encravada no âmago do Nordeste baiano, entre Jeremoabo e Várzea da Ema. A denominação de Raso traduz bem a fisionomia topográfica do terreno, sem acidentes nem escabrosidades, a desdobrar-se plano em chapadões.

É um deserto, e um deserto recrestado de agressividade sem par, naquelas terras onde tudo é árido e adusto. Comparando-se-lhe á caatinga que a circunda, embraseada e maninha, é um vergel, porque ainda possui o juazeiro de folhas virentes e cacimbas onde borbulham filetes impercetíveis de água.

É um sarçal ardente. Verdadeira “sylva horrida!” – A Sylva Aesu Aphylla, de Martius.

É nesse país dos nordestinos que localiza-se, não apenas uma região, mas uma alongada faixa de terra chamada Agreste, entre a zona da mata e o sertão semi-árido, que vai desde o Rio Grande do Norte aos planaltos da Bahia. Nenhuma outra parte do nosso país tem a primazia de possuir a beleza selvagem e áspera das terras agrestinas.

Foi nesse país de esguias, secas e belas paisagens que, no ano de 1951, pelo projeto convertido na Lei nº 1.348, de 10 de fevereiro de foram definidos os limites do bolsão das secas: “A poligonal que limita a área dos estados sujeitos aos efeitos das secas, terá por vértices, na orla do Atlântico, as cidades de João Pessoa, Natal e Fortaleza e o ponto limite entre os estados do Ceará e Piauí, na foz do Rio São João da Praia; a embocadura do Longa, no Parnaíba, e, seguindo pela margem direita deste, a afluência do Urussu Preto, cujo curso acompanha até as nascentes; a cidade de Gilbués, no Piauí, a cidade de Barras, no estado da Bahia, e pela linha reta atual, as cidades de Pirapora, Bocaiúva, Salinas e Rio Pardo de Minas, no estado de Minas Gerais, as cidades de Vista Nova, Poções e Amargosa, no estado da Bahia, as cidades de Tobias Barreto e Canhoba, no estado de Sergipe, a cidade de Gravatá, no estado de Pernambuco, a cidade de João Pessoa, no estado da Paraíba”. (Sic).

Em 220 anos, o Ceará, por exemplo, sofreu 20 secas maiores e menores. O Nordeste, de um modo geral, experimentou em igual período os efeitos desastrosos de 26 inundações e 24 secas.

Na grande seca de 1777, o rebanho bovino da região do Seridó, notadamente da região dos Currais Novos, foi quase que totalmente dizimado. Do grande rebanho de Dona Adriana de Holanda e Vasconcelos, que possuía cinco datas de sesmarias, e que eram de aproximadamente 6 mil cabeças, restaram apenas 8 reses: 4 bois mansos, 3 vacas e 1 bezerro macho. E foi com essa semente de gado eu D. Adriana e seus filhos, numa soma de esforços e de trabalho obstinado, restituiu aos seus currais, nos anos subseqüentes, todo o gado que lhe fora arrebatado pela variante, evitando assim que se perdessem os ferros. [2]

Na verdade, o que há, muitas vezes no semi-árido do país dos nordestinos, não é a falta d’água em si, ms certamente a falta de reservatórios pra segurar toda a água caída das chuvas. Mas também existe a má distribuição, pela irregularidade de chuvas, naturalmente, por isso, teve razão aquele sertanejo do Rio Grande do Norte que disse ao jornalista Carlos Lacerda: “Dêe-me cinco chuvas por ano, nos dias que eu escolher, e tudo estará bem!”.

A média pluviométrica de quase todo o semi-árido nordestino é de 400 a 500 mm/ano, e só para se ter uma idéia, os Estados Unidos, eu recuperaram vastas regiões do seu território pela irrigação, com uma queda pluviométrica nunca superior a 264 mm/ano; casos também comprovados na Itália, na Lombárdia, Piemonte, e nas várzeas do Pó; dos franceses, na África, dos ingleses, na Índia; do Egito e da China.

Na pavorosa seca de 1930-1932, a média de chuvas no Ceará, por exemplo, foi de 454 mm; na Paraíba, de 358 mm; e no Rio Grande do Norte, de 354 mm. Mais do que os 264 mm caídos em todas as outras regiões recuperadas pelo mundo afora. Portanto, fica patente que o problema do semi-árido nordestino não é água, mas sim reservatórios para reter as águas caídas das chuvas, e vergonha na cara dos nossos políticos.

Mas, é nesse país dos nordestinos, tão cheio de contrastes e de belezas que, a desertificação está se expandindo e atingindo níveis alarmantes. No Ceará, que tem uma área total de 148.016 Km² 17% do seu território já está comprometido com um acelerado processo de desertificação. Isso significa 25,1 mil Km² de terras improdutivas para a agricultura e a pecuária, comparáveis a um espaço superior ao estado de Sergipe (com 22.050 Km²) e um pouco menor do que a Bélgica (com 30.520 Km&sup2). O processo gradual , porém já acelerado de desertificação também atinge o Rio Grande do Norte, e no município de Currais Novos existem áreas onde a dizimação da flora e de toda a vegetação nativa é preocupante, e a esterilidade da terra é digna de ser levada em consideração pelos nossos governos: municipal, estadual e federal, o que não acontece, pois quase sempre os “grandes” estudos e as “grandes” soluções para o problema, perdem-se entre as gavetas abarrotadas de “grandes” projetos governamentais. Disse Semller que, “nos desertos é que devemos procurar a solução para o deserto”. Mas aqui fazem e agem de modo sempre contrário. Fala-se muito em reflorestamento, mas será que poderemos reflorestar uma região como a nossa, que nunca teve uma floresta recente? Pode-se falar de desenvolvimento sustentável, tardiamente, sabendo nós que esse desenvolvimento aqui nunca irá chegar?

[1] “Não existe pecado além do equinócio”. – Barléus.
[2] Expressão típica do Seridó: perda de todo o rebanho por seca ou morrinha – não sobrar mais gado para ser marcado.